A Paixão de Cristo
Segundo o
cirurgião CAPÍTULO 29
SEPULTAMENTO

Foi êste capitulo, no princípio, uma palestra feita aos médicos
de Paris da Sociedade de S. Lucas ,a 16 de junho de 1 947. Dizia-lhes
-eu então:
Escrevi meu primeiro livro, caros Confrades, a respeito de tudo
-que fez e sofreu Jesus durante sua dura Paixão, até a hora em que,
dectdmdo morrer, entregou sua alma ao Pai. Mas já que muitos
tentaram fazer uma narração dos fatos acontecidos após sua morte,
.segundo o que nos transmitiram aquêles que foram desde o início
testemunhas oculares e ministros da Palavra, pareceu-me bem, também
a mim que, de há muito, me venho dedicando a tudo conhecer
exatamente, disso vos falar com ordem, 6 Teófilos, a fim de que
percebais bem a solidez do ensinamento que recebestes. ( 1 ) .
Desta vez, não mais s e trata evidentemente de anatomia e podereis
talvez me acusar de passar "acima das sandálias". Minha desculpa
será que filologia e exegese são de há 40 anos meus violinos
d'Ingres. Se ouso emitir alguma hipótese, ou tirar alguma conclusão,
.crêde-me, estou apoiado em altas competências e em autoridades in-contestáveis.
Nesta questão que, às vêzes, se tem querido embrulhar à vontade,
tudo repousa sob o estudo dos quatro Evangelhos. Por isto seguilos-
emas palavra por palavra, procurando em outras passagens da
Sagrada Escritura os esclarecimentos necessários e pedindo, às vêzes,
a outras ciências os auxílios que nos possam dar. A base essencial
de nosso estudo e a sinópse dos quatro Livros, no original grego, no
texto latino e no francês, também o aramáico nos reservará talvez
alguma surprêsa.
O primeiro fato notável, nesta leitura de conjunto (sinóptica) ,
.é que cada um dos quatro descreveu o s acontecimentos de acôrdo com
.seu plano e temperamento pessoal, de modo diferente, muitas vêzes
com outras palavras, não insistindo sôbre as mesmos detalhes. 1:les
.se completam sem se contradizerem. Sabemos que todos são inspirados
pelo Espírito Santo e possuem o privilégio da inerrância. Quando nos parece ver nêles opos1çoes, é porque os estamos compreendendo
mui. Não pretendo, ao estabelecer êste princípio, cair no êrro do
concordismo e vereis que seremos forçados a reconhecer dentro das
aparentes contradições llma concórdia perfeita. Detalhes, se quereis,
já que nos importam sobretudo a Paixão e a Ressurreiço, mas
detalhes que podem levar perturbação aos espíritos melancólicos.
Nota do Trad. : lmta o A. propositadamente o prólogo de S. Lucas qua
.soa: "Já que muitos tentaram fazer uma narrativa coordec.ada das coisas que
ontre nós se realizaram, como nô-l.as traru=mitiram aquêles que foram desde o
início testemunhas oculares e ninistros da Palavra, pareceu-me bem também a
mim, depois de haver diligentemente invest:igado tudo desde o princípio, disso to
falar IXlm ordem, ó excelentíssimo T· ófilo, para que percebas bem a solidez
..daquela doutrina em que fôste instruído". (Lucas, 1,1-5) .
O outro fato, pelo qual começaremos, ressalta claramente do
conjunto das narrativas. É a brevidade do tempo concedido aos discípulos
para o sepultamento de Jesus. Releiamos pois, nossa sinópse :
estamos no Gólgota à nona hora, i . e . cêrca das três horas da tarde,
do dia 13 do mês de Nisan, provàvelmente do ano 30 p . C .
Jesus inclinou a cabeça, na linha mediana, sôbre o peito, no
momento escolhido por :l!:le e entregou sua alma humana ao Pai,
"et inclinato capite enúsit spiritum". Ora, o Sábado começaria cêrca
das 6 horas, à primeira estréia, quando não mais se pudesse distinguir
um fio branco dum fio negro. E, quantas cousas se vão fazer
nessas 3 horas! "Os judeus, então ( diz S. João ) , como era a Preparação,
( véspera da Páscoa ) para que os corpos não ficassem na cruz.
ciurante o Sábado, pois era um grande dia de Sábado, pediram a
Pilatos que quebrassem as pernas aos crucificados e que os retirassem
dali". Lembrai-vos que há 600 m do Calvário ao Pretório, por
ruas acidentadas e que as idas e vindas vão ser muitas. Pilatos não
estará certamente muito de humor para se apressar em receber êsses
judeus, que conseguiram lhe arrancar, pelo mêdo, uma condenação
injusta ; deve té-los feito esperar. Entretanto concordou em enviar
soldados munidos das barras de ferro necessárias. O costume romano
era deixar os condenados na cruz até à morte e de lançá-los, em
seguida, à vala comum; mas por outro lado a orientação de Roma
era a de se adaptar aos costumes indígenas.
"Os soldados vieram,
pois, (do pretório) e quebraram as pernas ao primeiro e ao outro
que tinha sido crucificado com ll:le. :ll:ste "crurifragium" os impede
de se soerguerem apoiando-se nas pernas para dessa forma diminuir
a tração sôbre as mãos. A "tetania" os dominará pois definitivamente
e terminará pela asfixia. Vão êles agonizar; Jesus j á está morto. '
Coloca-se aqui o gesto trágico de um dos soldados ; a tradição
designa o centurião da guarda no Calvário e lhe dá o nome de
Longinos, que não passa de uma deformação do nome grego "lonche'"
(lança ) . Por que haveria de executar êste centurião, que seguiu com
simpatia o martírio de Jesus e acabara de O proclamar justo e filho
de Deus, um gesto tão cruel? Em todo o caso, João escreveu: "unl
dos soldados". Vimos (capítulos 2.0 e 6.0) que isto não passava de
gesto regulamentar, indispensável para a entrega do corpo à família
que já dera os primeiros passos para requerê-lo. Não insistirei sôbre
êste episódio, já longamente estudado diante de vós, quando falamos
sôbre o derramamento do sangue da aurícula direita e da água .:io
hidropericárdío.
A tarde já ia avançada, quando chegam .José e Nicodemos que
vieram dirigir o sepultamento. "A tarde havia chegado", diz São
Matcus - "a tarde tendo já chegadc.'', insiste Marcos, José de Ari-
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matéia, chega por primeiro. Era, segundo os sinópticos, decurião,
homem justo e bom, discípulo de Jesús.
Na qualidade de membro do conselho, acrescenta São Lucas,
"não havia consentido nas decisões e atos dos outros". Vendo ,Jesus
morto, e os ladrões agonizantes e que os Judeus os iam retirar,
decide-se a ir procurar Pilatos para requisitar o corpo do Mestre;
"era discípulo de Jesus, diz S. João, mas em segrêdo, por receio dos
Judeus". "Audacter introivit ad Pilatum, insiste Marcos, "teve a audácia
de ir a Pilatos". Era isto, com efeito, comprometer-se seriamente
e, sem dúvida, deve ter êle hesitado um pouco. Mas Pilatos
exasperado pelos sinedristas, devia com satisfação aceder a seu
pedido, muito satisfeito por atirar esta cartada a seus perseguidores.
Convém relermos em S. Mateus a arrogância com que os recebeu
em seguida quando ihe vieram expor o receio de furto do corpo
e pedir que o mandasse guardar: "Tendes guarda, ide e fazei guardar
como muito bem o entenderdes".
Estava, portanto, muito bem disposto a acolher o pedido de
José; mas uma coisa o espanta e é que Jesus já tivesse morrido;
os crucificados não morrem tão depressa e José deverá ter dito que
não lhe haviam quebrado as pernas. "Pilatus autem mirabatur si
iam obiisse - admirava-se Pilatos de que já tivesse morrido"
Marcos ) . Enviou por isso uma ordenança a procurar o centurião
da guarda do Calvário. Chega êste, pou.::o depois, e confirma a
morte a seu chefe, que outorga a José o corpo de Jesus. Havia,
como o sabemos, o costume de entregarem o corpo dos supliciados
às famílias que os reclamassem.
Mas, precisavam de u'a Mortalha. Mateus e Lucas apenas
dizem: "tendo tomado o corpo envolveram-no (envolveo-o) em o'a
mortalha" - "u'a mortalha limpa" precisa Mateus ; Marcos porém,
nos diz que ao sair da casa de Pilatos, José foi à cidade comprar
u'a mortalha "Joseph autem mercatus sindonem"; nova providência,
mais uma atraso. Em seguida, foi ao Calvário e todo o trabalho
estava ainda por fazer.
A respeito da descida da cruz e do transporte para o túmulo
já vos expus claramente minhas idéias. O corpo só foi envolvido
na Mortalha após o transporte da cruz para o túmulo; e neste
trajeto o sangue se derramou pela chaga do lado, pois do contrário
teria inundado a Mortalha. A cruz consta de duas peças:
o "stipes" permanentemente fincado no Calvário e o "patibulwn",
o braço horizontal que foi levado por Jesus. Após a morte por
"tetania", a rigidez é súbita e máxima ; fica o corpo como urna
barra de ferro. Daí por diante a técnica se impõe: arrancam-lhe
o cravo dos pés, o que não é tão fácil, depois desengancham o patíbulo
que dois homens sustentam, um em cada extrelnidade, enquanto
um terceiro sustenta o calcanhar direito que está atrás do esquerdo.
Finalmente, como um corpo de 80 kg mais a trave fazem
wn conjunto muito pesado, dois outros torcem ràpidamente um
pano e fazem uma cinta com que Lhe sustentam os rins (para
aliviar a carga dos outros três ) . O resto do sangue venoso ao sair,
por causa da posição horizontal, inunda esta cinta e se coagula em suas dobras, em meandros irregulares. (Todos êstes detalhes, bem
o vimos, se verificam na Mortalha de Turim, minúcias que um
falsário não teria jamais imaginado) .
Felizmente, o sepulcro está ali pertinho, por isto mesmo o
haviam escolhido. 1:ste sepulcro "fôra escavado na pedra", escreve
Marcos - e "onde ninguém fôra ainda colocado, acrescentou Lucas ;
e Mateus precisa que "José o mandara escavar para si Inesmo".
João é ainda mais explícito: "Ora, no lugar em que Jesus, fôra
crucificado, havia um jardim e neste jardim um sepulcro novQ, no
qual ninguP.m fôra ainda sepultado. Foi pois ali, por causa da
Preparação dos Judeus, uma vez que o sepulcro estava perto, que
colocaram Jesus". Creio que não se poderia sublinhar com maior
clareza a pressa que tinham êles de terminar, antes do comêço do
Sábado. Escre,·e S. Agostinho (Tr. in Johannem, CXX, 1 9 ) : "Acce-
1eratam vult intelligi sepulturam ne advesperasceret - Quis dar a
entender que a sepultura fôra acelerada pelo receio de que sobreviesse
a tarde".
Transportado o corpo, foi êste primeiro estendido sôbre uma
pedra da antecâmara do sepulcro ( 2 ) que a tradição chama a "pedra
da unção". É que era necessário libertá-Lo .do patíbulo. Puderam
então arrancar os cravos das mãos, mas com que piedosas e ternas
precauções, bem o podemos imaginar.
Embora o trabalho no chão seja mais fácil, ainda se requer
'IlUita-fôrça e tempo para os arrancar da madeira ; feito isto, saem
os cravos sem dificuldade dos carpas. Em seguida, os braços, que
estavam afastados a 65°, deviam ser reconduzidos para diante do
corpo. A rigidez, como o dissemos, era máxima ; foi necessário cmt>regar
tôda sua fôrça para vencê-la, tomar flexíveis as espáduas
"" levar as mãos até cruzá-las diante do pubis ; tudo isso exige
tt:mpo: "E o Sábado começava a luzir", diz S. Lucas - "et sabbatum
illucescebat"; acendiam as lâmpadas do templo e as trombetas que
anunciavam o início do grande dia já iam soar. Como então executar
de maneira completa os ritos do sepultamento?
Antes de continuar o estudo de nossos textos, seria oportuno
procurar saber como os judeus sepultavam seus mortos. A primeira
certeza que temos é que isto nada tinha de comum com o embalsamamento
dos egípcios. Em tôda a Bíblia, só encontramos duas mumificações:
a de Jacob e a de José, mas isto mesmo no Egito, por
quase egípcios. Jamais, em outra parte, se fala de tiras nem cvisceração
nem de natro ( = carbonato de sódio) . Nas catacumbas ju-
(2) Nota do Trad. : Ainda aqui deveremos discordar do A. pois a antEcâIJiara
do S. Sepulcro, hoje conhecido. pela designação de "Capela do Anjo", por
terem nela 'l'isto as S. Mulheres o Anjo que lhes veio anunciar a Ressurreição,
é pouco mais espaçosa que a câmara mortuária e nela cabe um homem de braços
abertos, mas de forma alguma nela poderia er.trar nessas condições po!s a porta
é bastante estreita. Além disto devemos nos lembrar de que o patíbulo era mais
comprido do que os braços abertos, dificultando assim não só a entrada mas também
os movimentos dentro da anticâmara. Portanto, a operação de despregar o
patíbulo deve ter sido feita do lado de fora.
as rnllmias são raríssimas (duas ao todo) trata-se provAvelmente
de judeus da diáspora egípcia. Todos os outros corpos estão
vestidos corno vamos ver. Maimônide, médico judeu de Córdoba,
do século 12, escreve: "Depois de fechados os olhos e a bôca do
defunto, lavava-se o corpo, ungia-se de essências perfumadas, e, e-m
seguida, se enrolava em um tecido branco, no qual se encerravam
ao mesmo tempo, os aromas" ( 3 ) . A Michna ( Chabbath, 3 3 , 5) nos
diz a êsse respeito: "Cumpre-se tudo que se deve ao morto ; ungindo-
o e lavando-o" ( 4 ) . Suponho, ao menos me parece mais logico,
que primeiro deva ser lavado e depois ungido .
Alfred Lévy, rabino de Lunéville escreve ( 5 ) : "Uma vez verificada
a morte, espera-se um quarto de hora durante o qual deve ·se
colocar nas narinas do defunto penas leves e se observa atentamente
para ver se algum movimento delas não vem indicar que a respiração
voltou. Passado êste prazo, fecha-se a bôca e os olhos do
defunto, dá-se a seus membros wna posição regular, envolve-se o
corpo em u'a mortalha e se o estende por terra, pronunciando estas
palavras: "Tu és pó e voltarás a pó". Parece, portanto, af haver uma
cerimônia preliminar, depois da qual se terá o tempo de preparar
o sepultamente propriamente dito.
Alfredo Lévy continua: "Antes
de passar à vestição fúnebre, purifica-se o cadáver, lava-se-o com
água morna, outrora ( eis o que nos interessa) era também perfumado
com essências diversas. Depois disto era revestido com a roupa
habitual. Esta vestição, tornando-se cada vez mais luxuosa, transformara-
se um pouco antes, no tempo de Jesus, em uma carga tal
para os herdeiros, que Gamaliel o Antigo, querendo reagir enêrgi··
camente, ordenou que se vestisse seu cadáver com roupas simples.
Esta reforma que reconduzia à antiga simplicidade, teve pleno
sucesso e se perpetuou por todos os séculos." Isto se conclui também
de uma série de documentos reunidos em meio israelita pelo saudoso
M. Pourché, entusiasta do Santo Sudário. Vários rabinos por êle
interrogados em França e na Palestina lhe confirmaram tudo isto ;
não conheciam senão um caso em que se fala de faixas para as
mãos e os pés: o de Lázaro, em S. João! Nem sabiam como explicar
tal anomalia.
O costwne dos primeiros cristãos, que devia derivar do costume
dos judeus, nos é manifesto através das "Acta Martyrum - Atas
dos Mártires" onde só aparecem: mortalhas, tecidos de linho, vestimentas
de linho simples, ou mais ou menos ornados, "in sindone
nova, mundo linteo, mundis sindonibus, in sindone biblea, cwn linteaminibus
rnundis et valde pretiosis, dignissimis panis, sindosin
kainais, estheti polutele" (Dom Leclerc Dict. Arch, ) . Nos "loculi"
das catacwnbas encontram-se tecidos de linho, tecidos tingidos de
púrpura, telas e sedas bordadas e ornamentadas, tecidos de ouro e vestes preciosas como as que vestiam S. Cecília no cemitério (catacumba
) de S. Calisto.
Portanto, envolvido primeiro na mortalha, o corpo era geralmente
vestido após a unção definitiva, e disto encontramos contirmação
nas próprias Sagradas Escrituras. Já não falo da filha de
Jairo que acabara de morrer quando Jesus a ressuscitou. Mas o
filho da viúva de Naim (Luc. 7, 14) era levado ao túmulo, quando
Jesus lhe disse: "Jovem, eu te mando, levanta-te; e se assentou
aquêle que estava morto e começou a falar". No caso de Tabitha,
ressuscitada por S. Pedro em Joppe ( Act. 9, 40) é ainda mais cvident€
: "Depois que a lavaram, r.olocaram-na no quarto alto". Foram
em seguida buscar Pedro em Lydda, o que supõe uma viagem de ida
e volta de pelo menos 1 0 horas. E Pedro "voltando-se para o corpo,
disse: Tabitha, levanta-te. Esta abriu os olhos e tendo visto l"edro,
assentou-se. Ora, tendo Pedro dado-lhe a mão, ajudou-a a se levantar."
Estavam portanto os dois defuntos vestidos.
Do ponto de vista histórico, parece tudo esclarecido: em uma
primeira fase, envolviam o corpo na mortalha e depois o preparavam
para a sepultura. Consistia isto em lavá-lo com água quente
seguida por uma unção com essências perfumadas, como o bálsamo
de nardo precioso de Maria Magdalena na refeição de Betânia, ou
os aromas que levava para o túmulo, no dia da Ressurreição. Esta
unção era feita por fricção. O verbo "aleiphein" empregado por
Marcos ( 1 6, 1 ) neste último episódio indica uma fricção com bálsamo
ou óleo ; é a mesma palavra que se emprega para a unção dos lutadores,
antes das provas do estádio; não se trata de simples aspersão.
O cadáver uma vez vestido era levado ao sepulcro. Era êste
às vt!zes um buraco cavado na rocha (Lázaro, talvez) aonde se d('scia
por meio de degraus e que se cobria com uma laje. Quase sempre
é uma caverna cavada pela mão do homem, compreendendo uma
antecâmara e urna cela posterior onde, sôbre um banco rochoso, se
depositava o cadáver. Uma pedra ein forma de disco rolando em
um canal lhe obstruía a entrada. "Et advolvit lapidem ad ostium
monumenti" - E rolou a pedra para a entrada do túmulo" . Exigia
o uso visitas ao defunto, pelo menos durante três dias (tinham os
judeus muito rnêdo da morte aparente) . Foi assim que pôde Marta
dizer a Jesus, com conhecimento de causa, a respeito de Lázaro·, seu
irmão: "Já fede, pois já está ali, há quatro dias". Quando Maria alertada
por sua irmã Marta, saiu para se ir encontrar com o Senhor,
os judeus, vindos para consolá-la, pensaram que tivesse se dirigido
ao túmulo (João 1 1 ) .
Voltemos agora a nossas textos e notemos, d e início, que, para
êste primeiro sepultamento, não há nem loção nem unção, nem nos
Sinópticos nem em S. João. É que o tempo premia, além de não
haver nem água quente nem bálsamos para a unção.
Escrevem pois os Sinópticos: " (José) . . . o envolveu em u'a mortalha".
Mateus e Lucas dizem, "enetulixen", Marcos "eneliesen", mas
o sentido é indiscutível e S. Jerônimo traduz as três palavras por
"involvit".
O "sindon" grego, "sindonis" para S. Jerônimo, que t raduzimos
por Sudário ou Mortalha, era uma comprida peça de linho, muito mais comprida que larga, com a qual se envolvia a cabeça e depois
o cr.rpo ; recordando, se se quiser, o "himation" dos gregos, o
"peplum" romano, ou melhor a "palia" das mulheres. Servia de
roupa interior, de roupa noturna e, para os mortos, de mortalha.
Chamamo-lo também sudário e em aramáico se chamava "sudarâ" ;
mas a isso ainda voltare'mos. Encontramo-lo em Marcos 14,15, no
momento em que levam Jesus, após a prisão no hôrto das Oliveiras:
"E um jovem o seguia, envolto em um sudário sôbre o corpo nu -
peribeblemenos sindona epi gymnou - seguraram-no, mas deixando
éle o sudário fugiu nu". Sem dúvida, era êste jovem o próprio
Marcos, filho de uma boa familia de Jerusalém; a casa de sua
mãe Maria haveria de ser mais tarde um dos principais centros da
cristandade primitiva (Atos, 1 2,12 ) . Encontramo-lo também no
Antigo Testamento: Sansão (Juízes 14, 12) promete a seus companheiro!::,
se resolverem um enigma, 30 sudários e 30 túnicas " . dabo
vobis triginta sindones et triginta tunicas". O "sudário" se usava sob a
túnica servindo-lhe de complemento. Em Jeremias 13, 1, o sudário
reaparece no grego dos LXX como "perizoma linoun", e S. Jerônimo,
tradu7 aqui por "lumbare lineum", o que lembra o mesmo gênero
de vestimenta.
:l!:ste sindon deu em francês antigo "sidoine". Mas emprega-se
paralelamente a palavra "linceul" (mortalha) de "linteolus" que
como "linteamen" deriva-se de "linteum" ( = tela de linho ) . Deu
em , italiano "lenzuolo", que quer dizer, como o lusitano "lençol",
"pano para cama". Não faz assim tanto tempo que ainda se chamava
em francês, os lençóis de: "linceux". "Lineum" deu "linge". Há
um notável parentesco em tôdas estas palavras e o tecido de linho
está na base de todo êste vocabulário. Mas cada vez mais, "linceul"
(mortalha ) como sudário, passaram a servir exclusivamente para
designar os panos dos mortos; voltaremos ainda a propósitc dêste
último ponto, quando falarmos do "sudarium". Como conclusão, os
sinõpticos afirmam que o corpo de Jesus foi envolvido em u'a
mortalha, e não falam de aromas.
Tomemos S. João que logo nos falará dêles : "José retornou ao
Calvário para levar o corpo de Jesus. Voltou também Nicodemos,
aquéle que viera uma primeira vez procurar Jesus de noite, e trazia
uma mistura de mirra e de aloés pesando cêrca de cem libras" (i.e.
mais ou menos 32 kg). A mirra é uma resina extraída de uma umbelífera,
o bàlsamodendro, tem um odor suave e possui ligeiro poder antissético.
O aloés, por mais que se o tenha dito, nada tem a ver
com a árvore de aloés ou calambuco ( agaloche dos franceses) , vendido
em aparas, que tem pouco odor e só o desprende quando queimado
(como nosso "papel da Armênia" ) , não tem poder algum antipútrido.
Além disso era então muito raro e caro, vindo do Extremo
Oriente.
Trata-se, no caso de Jesus, de uma resina extraída do aloés ou
agave (pita ) , da qual já na Côte d'Azur se pode ver as longas fôlhas,
grossas e espinhosas ( 6 ) . É dela que nos servimos ainda, em farmácia,
é o aloés socotrino vindo da ilha de Socotorá, no Mar Vermelho.
Tem aroma balsâmico entre a mirra e o açafrão. É encontrado no
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Bálsamo católico, no Bálsamo simpático e no Bálsamo turco.De
resto, foi sempre empregado no tratamento de cadáveres. Dioscorido,
( 7 ) , S. João Crisóstomo, os médicos árabes, o Romance da
Rosa ( 8 ) o atestam. E mesmo o antigo código francês, segundo meu
colega farmacêutico do Hospital S. José, M. Volckringer, ainda indicava
uma fórmula de pó para embalsamento que contém mirra e aloés
fórmula de pó para embalsamamento que contém mirra e aloés em
em partes iguais com outras drogas. Apesar de tudo,_ a mistura de
Nicodemos não poderia ter tido a pretensão de embalsamar um
corpo inteiro; apenas poderia retardar a putrefação da superfície
coberta de chagas infectadas. A própria superabundância da mistura,
seus 32 kg mostra que os discípulos não tinham outro fito que
uma antissepsia temporária.
Era necessário esperar 36 horas, para fazer na manhã do
Domingo, o entêrro ritual, lavar o corpo e ungir de bálsamos, era
o trabalho das mulheres e elas bem que para isso já se estavam
preparando. "Ora, Maria Madalena, diz S. Mateus, e a outra Maria
(a mãe de Tiago e de José, que nomeara como presente no Calvário)
1\Iadalena e Maria de José observaram onde O colocaram". Lucas,
que certamente foi se informar com as santas mulheres (sicut tradiderunt
nobis qui ab initio ipsi viderunt) - como nos transmitiram
os que desde o início viram pessoalmente ) , Lucas acrescenta mais
outros detalhes: "0 sábado começava a luzir. Ora as mulheres que
O haviam acompanhado desde a Galiléa, tendo seguido de perto,
viram o túmulo e como seu corpo foi nêle colocado (já faziam elas
seus planos para a unção ) . E tendo voltado, prepararam aromas e
perfumes. E, no sábado ficaram em repouso segundo o preceito.
Mas, no primeiro dia da semana, de madrugada, foram ao sepúlcro,
levando os aromas que haviam preparado." Estas palavras dão-nos
a impressão de estarmos quase que a ouvir aquelas fervorosas devotas,
narrando a S. Lucas queridas reminiscências como que perfeitamente
embalsamadas em sua memória. E Marcos, de seu lado,
nos diz: "E quando foi passado o sábado, (o sábado após o pôr do
sol) , Maria Madalena e Maria de Tiago (ora a designa por um ora por outro de seus filhos) e Salomé compraram perfumes, para ir
fazer niUe as unções". :tste é que haveria de ser· o sepultamento
ritual e definitivo. Já determinamos o sentido do verbo "aleiphein".
Tratava-se de aromas análogos ao bálsamo de nardo precioso espalhado
por Madalena em Betânia. A mirra e o aloés apenas serviriam
para conservar provisoriamente.
Partimos da mirra-aloés de S. João para chegarmos aos aromas
dos sinópticos. Esta antecipação era necessária para estabelecer o
detalhe do sepultamento. Mas é necessário voltarmos a S. João,
para compreender esta famosa frasezinha que tem atormentado
tantos exegetas ortodoxos e feito descarrilhar tantos protestantes e modernisias. Abramos primeiro a Vulgata de S. Jerônimo : "Acceperunt
ergo corpus Jesu et ligaverunt illud linteis cum aromatibWI,
sicut mos est Judaeis sepelire.'' "Cum aromatibus", com mirra e
aloés; o texto grego diz: "meta ton aromatom", com os aromas e
não com aromas ; são, sem dúvida, aquêles de que falara há pouco.
O silêncio dos sinópticos sôbre isto não faz düiculdade, pois têm
êles liberdade de não dizer tudo.
Nota do Trad. : Escrvendo o A. na França, nota onde se pode encontrar
esta plw:ta, i. c. na região meridional onde o clima é mais próximo do tropical.
(7) Médico grego do séc. I, autor de um tratado aõbre medicina.
(8) Poema da Idade Média do séc. XIII.
"Sicut mos est Judaeis sepelire". O R. P. Lagrange e o Cônego
Crampon concordam em traduzir "segundo a maneira de sepultar
dos Judeus". Admitamos provisoriamente e não me taxem de presunção.
Não sere1 eu quem retificará. Mas, "ligaverunt cum linteis"?
Aqui há divergência : Lagrange dá "ligaram-no com faixas" e
Crampon "o envolveram com panos". Parece ser esta última tradução
tradicional, porque a encontrei em um Novo Testamento do
Padre Amelotte, do Oratório, em 1753 . E Gerson traduz "com mortalhas"
( = linceulx) ( 9 ) . Vimos que não usavam os j udeus faixas.
Além disto, as faixas, a menos que as desenrolassem completamente,
haveriam de impedir as unções previstas para o Domingo.
Finalmente, por que dar-se ao trabalho de O enfaixar quando estavam
prevendo as unções?
Mas o texto traz "othonia", que S. Jerônimo muito bem traduz
por "lintea". Ora, os dicionários nos dão para "othonion" : "pequeno
pano fino" ; "vestimenta", "véu em tecido fino" e mesmo "tecido de
vela", "velas", e em último lugar "ataduras" de tecido. Para "linteum"
encontramos nos dicionários: "tecido de linho" pedaço de
tela - por extensão, vela de navio (Virg., Ov.)". Portanto no plural
a mesma coisa, são panos. No domingo de manhã, Pedro e João
acorreram ao túmulo vazio e ali encontraram "ta othonia", segundo
Lucas e João. São Jerônimo traduz aqui por "linteamina" que nossos
dicionários traduzem por "panos". Ora, em S. João, o R. P. Lagrangc,
fiel à sua teoria sôbre o modo de sepultar usado pelos judeus,
traduz "as faixas", mas no Evangelho de S. Lucas,
o mesmo ilustre exegeta escreve "os panos". Aliás, quando
S. João, ao falar da ressurreição de Lázaro, cap{tulo 11, nos diz
que as mãos e os pés estavam amarrados por faixas, emprega a
palavra "keiriai". que S . .J erônimo traduz "instita". Estas duas
palavras significam: faixas, tiras, ataduras, cintas. Finalmente se
fôr necessário terminar o debate por uma alta autoridade, encontro no já citado livro de Mons. Paleotto, arcebispo de Bolonha, em 1598,
esta citação de S . Agostinho, com a qual até os mais exigentes hão
de se contentar: "Licet Joseph involverit eum in sindone, propterea
non prohibetur intelligi quod et alia lintea postea addita fuerint a
Nicodemo . Undc etsi una sindon fuerit, verissime dici potuit:
ligaverunt eum linteis - embora José o tenha envolvido em u'a
mortalha, não estamos por isso proibidos de admitir que outros
panos tenham sido acrescentados pol' Nicodemos . . . Ainda mesmo
que tivesse havido uma única mortalha, (João) poderia muito bem
dizer: encerram-no em panos." Em seguida S. Agostinho nos dá sua definição: "Lintea quippe generaliter dicuntur quae lino texuntur.
- São, com efeito, chamados panos todos os tecidos de linho", E
Paleotto acrescenta seg. Beda que leu nos anais Pontifícios - que
S. Silvestre ordenou, por causa dos panos da Sepultura, que o corporal
da Missa fôsse de linho simples e não de outro tecido. Consegui
encontrar êstes dois textos: S. Agostinho, De Consensu Evangelistarum,
livro 3.0, cap. 23. - V. Beda, In Marci Evangelium ex··
positio, livro 4 .0 (Patrol. Latina, tomo 92, col. 293 ) .
Chegamos a o "ljgaverunt" da Vulgata que traduz o "edesan"
de São João. O verbo "deo", como o latino "ligo" significa essencialmente
ligar, atar. No entanto se tornarmos a ler a ressurreição
de Lázaro, no cap. 11 de São João, veremos que "facies illius
sudario erat ligata" que S. Jerônimo traduz pelo mesmo "ligare",
um composto de "deo" que deveria ·amplificar a idéia de enrolar
as faixas "perideo" (que os dicionários dão como "envolver, atar
em volta" ) . Mas, trata-se aqui de um sudãrio e o R. P. Lagrange
traduz "peridein" e "ligare" por "envolver". Ser-me-ia permitido
para conservar a "edesan" a idéia de imprecisão de propor a tra.
dução: ''encerram-no em panos" ? í:stes panos compreendiam entre
outros, como o sugere S. Agostinho, a Mortalha que envolve estreitamente
o corpo por baixo e por cima em todo seu comprimento
e em tôda a sua largura ; muito justo, portanto, serã dizer-se que o
corpo ali estava encerrado.
Voltemos agora a "sicut mos erat Judaeis sepelire". O original
grego diz: "kathos etos estin tois loudaioi$ entaphiazein". Ou M .
Lévesque, exegeta e filólogo tã o modesto quão erudito, d o qua"l, em
graves circunstâncias, . tive a honra de ser o cirurgião e amigo )
traduz (Diction, de la Bible) "segundo a maneira de preparar o
sepultamento em uso entre os judeus". O dicionãrio de Bally nos
dll também ·preparar o sepultamento". Numerosos helenistas consultados
por meu amigo o R. P. Aubert O. P. confirmaram éste
sentido: o sufixo "azein" indica uma ação começada mas não terminada,
em curso de execução. Para "entaphiazein", escreve um
dêles, não se pode traduzir a não ser "preparar o sepultamento" ( 1 0 ) .
Encontramos aliás êste mesmo verbo na refeição de Betânia, na
véspera do Domingo de Ramos que dá lugar a traduções mais ou
menos embaraçosas. Maria Madalena derramara sôbre os pés de
Jesus uma libra de unento de nardo puro e precioso; Judas, o
ladrão, censura que nao o tivesse vendido para dar seu preço
aos pobres, mas S. João comenta friamente que teria êle, na realidade,
colocado em seu bôlso.Jesus castiga duramente Judas e os
detratores de Madalena.- João e Marcos não empregam senão o
substantivo "entaphiasrnon" que mais fàcilmente se traduz: "ela
guardou êste perfume para o dia de minha sepultura" (João 12, 7 ) ,
ou: "ungiu meu corpo por antecipação para a sepultura" (Marcos
to entaphiasai me epoiesen", o que o Vulgata exprime por "ad:14, 8) o que já é mais claro. Mas, Mateus em 26, 12 escreve: "pros
;Sepeliendum me fecit", e o R. P. Lagrange "ela o fêz para me
prestar um dever de sepultura. É evidentemente uma unção simbólica
; Jesus prediz que Maria não poderá fazer esta unção sôbre
seu cadáver, porque deverá ressuscitar. Mas, se o traduzirmos como o
propõe M. Lévesque: "para o sepultamento de Jesus", o sentido
torna-se evidente porque diz Jesus : "ela o fêz para preparar meu
-entêrro".
Mas, então tudo se esclarece: Os discípulos não executaram
senão o primeiro ato dos costumes israelitas, aquêle que precede
o sepultamento propriamente dito, e isto por falta de tempo e de
material. Encerraram Jesus em u'a mortalha que envolveram com
panos impregnados de uma mistura de mirra e de aloés, para obterem
uma relativa antissepsia superficial; a unção definitiva após a
lavação, seria feita pelas mulheres, no primeiro dia depois do
Sábado. Traduziremos, pois, S. João, se é que vos pude convencer:
"e êles o encerraram em panos com os aromas (mirra e aloés de
Nicodemos) , segundo a maneira de preparar o sepultamento em
uso entre os judeus". O maior dêstes panos (tecidos de linho) era
.a Mortalha dos sinópticos, comprida e larga peça de linho. João
não a nomeia expressamente, mas fa-lo-á, como o veremos, no
Domingo de manhã.
"V espere autem sabbati, quae lucescit in prima sabbati . . . "
-t:onheceis o resto e o quanto isto soa alegremente nas curtas vésperas
do Sábado Santo. Assim, pois, no Domingo de madrugada,
:Maria Madalena (João) com as Santas mulheres (sinópticos) , levando
seus aromas (Marcos e Lucas) para ungir o corpo ( "aleiphein",
Marcos) vão ao sepúlcro e o encontram aberto e vazio.
Deixemos de lado os detalhes, a aparição dos anjos, o pavor das
mulheres e sua fuga. Correm elas a anunciar aos apóstolos a
·nova, que êstes qualüicam de "deliramentum" ; nosso Santo con.
frade Lucas, emprega aqui a palavra técnica "leros", que é o delírio
causado pela febre, notemo-lo de passagem.
que, 'Sem aguardar a opinião dos outros, partem logo para o túmulo.
Lucas só fala de Pedro: "Contudo Pedro se levantou, correu ao
·sepúlcro e, tendo-se inclinado, só viu os panos", "blepei ta othonia
mona". Notemos que Lucas, a respeito dos acontecimentos da
sexta-feira, só falara àa Mortalha. É portanto evidente que desta
Mortalha fazem parte também os "panos" como já o concluímos,
com S. Agostinho, ao estudar o texto de João.
S. João, escrevendo por último, completa aqui, como em geral,
seus predecessores, os Sinópticos, da mesma maneira como passa
-em silêncio o que sabe já ser bem conhecido por sua catequese
oral. Portanto, Pedro e João correm ao túmulo, mas João, mais
jovem, chega por primeiro. "E inclinando-se viu "linteamlna po"Si
ta" - "keimena ta othonia" - os pau.os depositados" - (os
Sudários colocados no chão, escreve Crampon - as faixas jacen"tes,
escreve o P. Lagrange, que no entanto traduzira em seu comentário
sôbre S. Lucas: "não viu senão panos" ) "Mas ILão entrou."
Notemos a deferência para com o chefe dos apóstolos. "Sim.áol
Pedro chea pois também a seguir, e entrou no sepulcro e viu os.
panos colocados no chão e o sudário que estivera sôbre a cabeça
de Jesus, não colocado com os panos, mas dobrado separadamente
em um canto. Foi então que o outro discípulo (João) entrou também,
êle que chegara primeiro ao túmulo, e viu e crêu.'' São
Jerônimo escreve: "vidit linteamina posita et sudarium quod fuerat
super caput eius, non cum linteaminibus positum, sed separatim
involutum in unum locum". Quanto aos "linteamina", os "othonia",
a questão está decidida; designam o conjunto de panos, entre
os quais Lucas, acaba de incluir a Mortalha, uma vez que dela
não fala na sexta-feira santa e que no Domingo não a especüica.
Mas qual teria sido êste "sudarium" que S. João coloca aqui em
tanta evidência, dobrado à parte, quando não falou a não ser de
"panos", na sexta-feira? Chegamos assim à últiina düiculdade que ..
como veremos, é também puramente filológica.
Escreve S. João: "kai to soudarion o en epi tes kephales autou.
ou meta ton othoniokeimenos, alla choris enteluligmenon eis eaa.
topon". "Sudarium" de "sudare" ( = suar ) , é, no latim clássico,
um paninho, um lenço, destinado a enxugar o suor ( "soudarion"
é uma transcrição do latim para o grego, os dicionários gregosregistram
Unicamente : "sudário, mortalha" ) . Depois, foi sempre
usado com o significado de "sudário", no sentido de mortalha"; a
isto voltaremos logo em seguinda.
"Aliás não parece ter estado nos hábitos judeus até à ruina de
Jerusalém e mesmo depois", escreve Lévesque ( 1 1 ) "que o emprêgo
de sudário, simples véu para cobrir o rosto, tenha estado em uso . .
Parece bem mais provável que então se contentassem d e rebater
o sudário sôbre o rosto e diante do corpo. Existe ainda êste costume
no Oriente, entre os Drusos, entre os antigos habitantes do pais._
Envolve-se o corpo em u'a mortalha, e êste é carregado, com o
rosto descoberto, até o túmulo, então se rebate uma parte da mortalha
por sôbre a cabeça até os pés. A mortalha é retida por 3 ou 4
ataduras que ligam os pés, fixam os braços ao longo do corpoou
cruzados sôbre o peito e a apertam, na altura do pescoço, de·
sorte que a mortalha envolve tôda a cabeça.
"É precisamente assim que nos aparece o sepultamento de
Lázaro (Jo. 11, 14) : "E logo saiu aquêle que estivera morto, amarrado
pés e mãos por faixas (diz João para Lázaro : keiriai, instita.
que com efeito signüicam faixas, cintas, e não othonia, linteamina,
panos), e seu rosto estava envolvido pelo sudário". Costuma-se representar
Lázaro envolvido em u'a mortalha da qual parte estava
redobrada sôbre o rosto e amarrada ao pescoço por uma faixa, os
braços ao longo do corpc igualmente envolvidos pela mortalha e • .
por cima desta, faixas apertando as pernas e ligando os braços ao busto.
Um homem vivo, assim amarrado e deitado por terra, poderia
sem dúvida com um vigoroso esfôrço erguer-se sôbre as pernas,.
adiantar um pé diante do outro, mas não poderia libertar os bra�,-'05..
nem o rosto." - É por isto que diz Jesus: "Desamarrai-o e deixai-o
ir ! "
S e adiro plenamente a esta conclusão d e M . Lévesque, é Unicamente
por convicção de que êle está com a verdade e de forma
alguma por que o sudário-lenço me pareça impecilho para a formação
da impressão facial.
Realmente de há muito que se objeta e ainda se continua a
afirmar que êste véu aplicado sôbre o rosto de Jesus, teria impedido
a formação, na Mortalha que estaria por cima de uma impressão
dêste Rosto. A descoberta de Volckringer (cap. I, E, 2.0) reduziu
a nada a objeção. Verificou êle que a planta imprimia sua in1agem
negativa não somente na fôlha de papel que a sustenta mas ainda
através dela, no envoltório de papel que estava por baixo. Esta
segunda imagem inferior, produzida apesar da interposiç-ão da
fôlha suporte, é quase tão bela quanto a primeira.
Ora, trata-se, em ambos os casos, animal e vegetal, de um
cadáver, composto, já insisti sôbre isto, de células que continuam
vivas até à putrefação, no homem, e até à dissecação, na planta.
- Se pensarmos que estas impressões vegetais são atualmente as
únicas conhecidas que possuem a perfeição do claro-escuro negativo
do Santo Sudário, podemos sem temeridade concluir que a Santa
Jo'<.ce teria podido marcar sua impressão sôbre o Sudário, mes:tBo
através de um sudário-lenço interposto. Mas, voltemos a João.
Dificilmente poderíamos conceber êste lenço que é de si pequeno,
dobrado à parte em um canto e chamando a atenção. Por
().ue, por outro lado, teria sua significação mudada no latim eclesiástico
e em tôdas as linguas latinas, para designar exclusivamente
u'a mortalha? Perguntas embaraçantes, mesmo fora da dificuldade
exegética. Mas, eis que M. Lévesque, no supra-citado artigo e na
Nota I de seu "Abrégé chronologique de la Vie de N . S . Jésus
Christ" (Beauchesse, 1 94 1 ) , veio, com uma palavra, lançar sôbre
éste problema uma claridade deslumbrante. Suas conclusões me
parecem irrefutáveis, e, está claro, tôda minha presente erudi!,-ãO
é, se me permitirem a ousadia, "episcopal".
A finalidade de João, nesta perfcope, é provar a ressurreição
de Jesus, dogma fundamental de tôda a religião, elemento primordial
da pregação apostólica. Ora, a presença da Mortalha no túmulo
vazio parece dever fornecer uma prova irrefutável. (5e tivessem
furtado o corpo, não teriam deixado a Mortalha que seria o meio
mais prático de o carregar) . Ficaria assim aniquilada a calúnia
inepta dos judeus de um suposto furto, durante o sono dos guardas
(Mt 28, 1 1 ) "0 infelix astutia, os ridiculariza S. Agostinho, oormientes
testes adhibes; vere tu ipse obdormistil - 6 astúcia
desasada, apresentas testemunhas que dormiam, mas, na verdade,
eras tu que dormias! " (Tractatio super Psalmos Ps. 63 ) . Não falaria
então, João, da Mortalha?
Encontra-se nos "Targumim" (Bíblia com comentários aramáicos,
em uso no .tempo de Nosso Senhor ) a palavra "sudara"
que define exatamente o que acabamos de ver que é o sudário
( = sindone) . No livro de Rut, 3, 15, o grande manto "mitfabah",no qual Rut se enrolou para dormir aos pés de Booz e .mde êste,
de manhã derramou seis medidas de cevada, é uma comprida peça
de tela, um grande véu que se mete sôbre a cabeça e que, se enrolando
pelo corpo, desce até os pés. Lembra, como o "slndon", o
"himation" dos gregos e a "palia" dos Romanos e a · 'schozar" das
mulheres árabes, com a única diferença que é uma roupa de
debaixo e roupa de dormir. S. Jerônimo traduziu-o por "palliu.m".
Ora, o Targum aramáico o chama "sudara" (sudário), nem se poderia
colocar seis medidas de cevada em um lençol. S. Efrem no
século IV, comentando a passagem de Jeremias, 13, 1 , que citamos
a propósito do "sindone", chama "soudoro" o tecido de linho
com que o profeta cinge 'os rins, chamado em hebraico "êzôr",
espécie de tanga envolvendo o alto das coxas e o tronco. É êste
o ofício do "sindone" que envolve o corpo e que serve de roupa
interna sob a túnica (cr. em Juizes, 14, 12 o episódio de Sansão) ,
S . Efrém não faz outra causa senão empregar a palavra que encontrou
na versão siríaca da Bíblia, conhecida pelo nome de
"Peshitta" i . e . Vulgata ( 1 2 ) , o que nos leva ao século li da nossa
era e talvez mesmo, para o Antigo Testamento ao 1 .0 a . C .
Existe portanto, na tradição oriental, anterior ao Novo Testan\
ento, uma palavra "sudara" que não tem o sentido do latim
clássico "sudarium" e de sua transcrição grega "soudarion", mas
designa uma ampla vestimenta de linho que se coloca sôbre a
cabeça e desce até os pés. É precisamente o "sindon", o "sudarium
quod fuerat super caput eius - o sudário que estivera c;ôbré a
cabeça dêle". Ora, João, como bom galileu, fala um grego impregnado
de aramaismos. Quando pensa "mortalha", a palavra
que lhe vem aos lábios é "sudarâ" da língua materna. Não é
então perfeitamente natural que escreva em grego "soudarion"?
De agora em diante, tudo se toma claro. Encontrou, no túmulo,
todos os panos e, entre êles, a Mortalha dobrada à parte,.
e que chama de "sudário". Era o maior dêstes "othonia" - ''panos"
e se compreende, sem dificuldade, que uma peça de quatro metros
por um, estivesse dobrada e que chamasse a atenção no canto
em que estava colocada.
Além disto, atingiu João o fim que se propusera; fornecendo
prova : o corpo não foi carregado. Jesus ressuscitou e deixou sua
Mortalha no túmulo vazio.
Nos séculos seguintes, o Sudário, como dissemos, ficou sendo
sinônimo de mortalha. Em 640 o monje ArcuHo peregrinando pela
Palestina, venera o "sud.arium Domini quod in sepulcro super
caput ipsius fuerat positum - o sudário do Senhor que no sepulcro
estivera colocado sôbre sua · cabeça" ( 1 3 ) . Ora, êste não é um simples véu mas sim wna peça comprida de tecido que mede 8 pés de comprimento, calculado a ôlho.
Nota do T..ad . : "Pesh!itta" é uma palavra siríaca que quer da
"Comum, vulg�ata, aoerlta" ou "simples". Designa o texto corrente em t1110 eatfto
os eruditos, munido de 1:1>tas críticas. É usada esta palavra, hoje em dia, para
DuUcar 11 texto comumenlle aceito e usado da versão siríaca da Bíblia, flito ••
ekulos I e 11 da II08Sa era.
(13) Acta Sanctdrum Ordinia Benedictini, edt. Mabillon.
No século Vll
ainda, S. Bráulio fala do "sudario quo corpus Domini est involutwn
- o sudário em que o corpo do Senhor foi envolvido" U4).
E ambos não empregavam esta palavra "sudarium" por falta de
palavra latina correspondente ao grego "sindon", pois fora de
S. Jerônimo, encontra-se a palavra latina "sindon" nos epigramas
de Marcial, com o sentido de longa peça de tela: "sindone cinctus
olente", diz êle de Zoile, "envolvido em um pano perfwnado". Em
todos os séculos, em tôdas as línguas latinas, "sudário" conserva a
significação de "mortalha" e a tradição oral da bela seqüência
"Victimae paschales laudes" nos repete seu éco: "sudarium et vestes".
Talvez mesmo, quem sabe, ali estivessem entre êsses panos,
expressos por "vestes" as roupas de linho com que teriam vestido o
cadaver, no Domingo de manhã, após terem-no lavado e ungido?
Podemos portanto concluir, após êste árido e apaixonante
estudo, que os quatro Evangelhos, ao se completarem mutuamente
estão em perfeito acôrdo. Jesus, por falta de tempo, foi colocado no
sepulcro, na tarde de sexta-feira, após uma simples preparação para o
sepultamento, apenas destinada a retardar a corrupção.
Os dH!cipulos,
sem loção nem unção, encerraram seu corpo em u'a mo:r-.
talha revestida de panos impregnados de grande quantidade de
mirra e de aloés. A preparação definitiva para a sepultura Que
consistia em lavar o corpo e em ungi-lo com aromas completamente
diferentes, deveria ser feita pelas santas mulheres no Domingo
de manhã. No túmulo vazio, Pedro e João encontram os panos
e a mortalha dobrada à parte.
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