A Paixão de Cristo
Segundo o
cirurgião CAPÍTULO 28
DESCIDA DA CRUZ - TRANSPORTE E SEPULTAMENTO

ESTE capítulo foi escrito para os médicos da Sociedade de São
.Lucas. (Boletim de março de 1 938 ) . Peço vênia para lhe deixar,
conscientemente, seu ar sêco e didãtico de demonstração científica.
Fiquei sempre meio chocado pela maneira um tanto brutal se_
gundo a qual os artistas representam a descida da cruz. Mesmo o
admirãvel Fra Angélico, o mais místico, o mais católico dos pin-·
tores, não escapa absolutamente a esta invectiva e, no entanto,
bem o sabe Deus, quantas vêzes tenho eu meditado diante de seu
comovente tríptico, hoje na Hospedaria dos Peregrinos no Convento
de S. Marcos, em Florença. Os pobres discípulos de Jesus,
José, Nicodemos e os outros mostram, é verdade, profunda aflição,
mas parecem, no entanto, reduzidos a operações antes dignas de
carrascos, o que deveria levar até o paroxismo uma dôr já violenta.
·Ora, o estudo do Santo Sudãrio me levou a urna concepção completamente
düerente e muito afastada da corrente tradição iconográfica.
Creio que essa boa gente conseguiu, realmente, descer o corpo
.da cruz e transporta-lo até o túmulo com urna delicadeza, uma
·ternura e um respeito infinitos. Apenas ousavam tocar aquêle Corpo
.ndorável.
Muitos confrades católicos, após a leitura das duas primeiras
edições do meu opúsculo : "Cinq Plaies" me disseram ou escreveram
que êsses meus estudos sôbre as cinco chagas constituíram
para êles a mais bela meditação sôbre a Paixão. Pareceu-me também
·útil, continuando no domínio científico, propor-lhes êste novo tema
para reflexão, não mer..os sugestivo, a meu ver: após as dôres da
Redenção e a crueldade dos carrascos, um exame sôbre a majestade
dêsse Cadáver onde continua sempre presente a Divindade e, ao
.mesmo tempo, a terna piedade dos discípulos.
Peço no entanto que se contentem com esta exposição científica
-e que tirem por si mesmos as conclusões ascéticas, para delas recolher
todo o fruto espiritual.
A. - O Corpo de Jesus foi transportado horizontalmente, mas
tal qual se achava na cruz, até à proximidade do túmulo; sõmente
ali é que foi depositado na Mortalha.
Com efeito. se as cousas se tivessem passado de outra forma,
a parte posterior do Sudário teria ficado inundada de sangue durante
o transporte. Pelo contrãrio, o transporte durou bastante
tempo para que a pleura se pudesse esvasiar de seu excesso pela
chaga do lado, mesmo que o sangue da veia cava inferior para
.ali tenha refluído, o que constituiria considerável massa. Recebi,
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um dia em que expunha esta idéia nos arredores de La Villette; at
aprovação entusiasta dos magarefes dos Matadouros. Sabiam por
experiência que quando limpam um boi, ao retirarem o fígado, o
corte necessário da veia cava inferior deixa passar uma onda de:
sangue negro. ( "A razão disso, seu Doutor, nós não sabemos! " ) .
A maior parte do sangue se perdeu (ou foi recolhida antes
que viesse a tocar o corpo) . Dêle não restou senão o que se coagulou
sõbre a pele pouco a pouco, enquanto escorria. Depois que o corpo
íoi assim transportado nu e colocado, após o transporte, na Mortalha,
recebeu im.icamente a impressão dos coágulos de sangue formados
sõbre a pele das costas durante o trajeto. Somente êste.icoágulos
é que imprimiram na Mortalha o que designamos po1·
hemorragia transversal posterior, porque êstes coágulos são o vestigio
dessa hemorragia.
B. - É certo que o transporte foi executado com o mínimo·
de manobras, de tal maneira que os coágulos ficaram, em seus
lugares, malterados. Manobras mais numerosas e menos delicadas •.
tô-los-iam sujado e destruido.
C. - De que maneira então foi Jesus Cristo transportado sem
que llae tocassem o Corpo?
1. - Já demonstramos nos capítulos II e III os dois fatos seguintes:
a) O patibulum (parte horizontal da cruz) era móvel: Jesus
teve suas duas mãos pregadas no patibulum enquanto estava deitado
no chão. Em seguida, ergueram-no para o alto do stipes fincado
permanentemente no solo do Gólgota, onde engancharam o patíbulo . .
B . - Sobreveio a morte, como propôs o Dr. Le Bec ( 1 ) e ·
como confirmou, por observação experimental, o Dr. Hynek (2),
após contrações tetânicas de todos os músculos. Estas dolorosas
caimbras generalizadas constituem aquilo que chamamos de tetania.
Esta nada tem a ver (insisto para os não médicos) com o tétano • .
doença infecciosa que produz caimbras análogas. Esta tetanizaçãa
acabou por atingir os músculos respiratórios, de onde a asfixia e a .
morte. O condenado não podia escapar à asfixia senão em s e erguendo,
sôbre os cravos dos pés, para diminuir a tração do corpo sôbre as.
mãos; cada vez que quisesse respirar mais livremente ou falar, deveria .
êle assim se erguer sôbre os cravos dos pés, é verdade que à custa
de outros sofrimentos.
Esta hipótese baseada em averiguações feitas no decorrer de
certos castigos corporais disciplinares, levados depois até o assassinato
nos campos de deportação hitlerianos, é das mais verossimilhantes;
e encontra con:firmação no Sudário pela saliência anterior
do torax e pela cavidade do epigastro.
Vimos, além disto, que o duplo fluxo de sangue do punho corresponde
a esta dupla posição, alternante, com suas duas angulações um pouco divergentes. Nestas condições a rigidez cadavérica deveria
ser extrema, como com os doentes que vêm a morrer de tétano: o
corpo estava rígido, fixado na posição da crucifixão. Podia ser
levantado sem que se dobrasse, seguro apenas pelas duas extremidades,
como um corpo em catalensta.
2. - Dado isto, é possível : a) despregar os pés arrancando os
cravos do stipes; b) abaixar o patibulum com o corpo rígido; c)
transportar o conjunto sem nenhum artifício: dois homens sustentando
as duas extremidades do patíbulo e um outro sustentando os
pés, ou mesmo só o pé direito que ficara por trás na altura do
tendão de Aquiles e do calcanhar. Esta parte do corpo, foi assim
a única que foi tocada durante o transporte.
Ora, na impressão do pé direito sôbre o Sudário, verificase
precisamente : a) que a parte posterior do calcanhar está mal
marcada, o que contrasta com o resto da impressã_o plantar, balrtante
nítida, isto faz parecer, à primeira vista ( como j á o notamos) , que
o pé e mais curto do que a realidade; b) que o fluxo de sangue
que desceu, durante o transporte horizontal, da chaga plantar para
o calcanhar não atingiu a parte posterior dêste, parte mal marcada
no Sudário. Explica-se isto, fàcilmente, se esta parte estivesse de
fato, coberta pelas mãos do transportador que sujaram o calcanhar e
impediram o sangue de correr até lá.
D . - É provável que tivessem sido cinco os transportadores e
não três para carregar aquêle corpo de cêrca de 80 quilos e o pesado
patíbulo que pesava não menos de 50 quilos. Os dois suplementares
sustentavam o tronco, por meio de um pano torcido para formar
uma cinta que atravessaram por sob a parte inferior do torax, na altura dos rins.
Com efeito: 1 .0 - A mistura hidrohemática da pleura, da qual
pequena parte se coagulou transversalmente no dorso, durante o
transporte, mui dificilmente teria podido (mesmo inclinado o corpo
sôbre o lado esquerdo) tornar a subir, além da linha mediana até
a borda esquerda. Esta borda, na posição horizontal, estava, com
efeito, mais alta que a linha mediana. - 2.0 - O fluxo de sangue
que se coagulou, transversalmente nas costas, está construído por
meandros irregulares (fig. 1 7 ) , várias vêzes bifurcados e depois se
reunindo de novo, o que está pouco de acôrdo com um fluxo regular
de sangue que não tenha tocado em coisa alguma. - 3.0 - Ao contrário,
um pedaço de pano irregularmente torcido, sustentando a
parte inferior do torax, deve necessàriamente ter-se impregnado com
pletamente de sangue durante o transporte; do qual pequena parte
se coagulou, irregularmente, à superfície da pele que podia atingir
diretamente, através das pregas do tecido, nos pontos em que êste não a comprimia.
E . - A rigidez cadavérica, que permitiu que se transportasse o
corpo sem que se dobrasse sob a influência de seu pêso, não é um
obstáculo que impeça, - estando o cadáver colocado na Mortalha,
despregadas as mãos e retirado o patibulum, - que se levassem os
braços da abdução para a adoção, e se cruzassem as mãos diante rlo
pubis. A experiência nos mostra que não há rigidez cadavérica que
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não se consiga vencer com um pouco de fôrça, mesmo que tenha
sido bastante intensa para resistir ao pêso do corpo.
Pode-se portanto concluir que tudo se passou mais ou
menos da seguinte maneira, com tôda verossimilhança.
1 .0 - Os pés são despregados do stipes, havendo um só cravo a
arrancar da madeira.
2.0 - Abaixa-se o patíbulo com o corpo, sem despregar as mãos.
O conjunto é transportado em bloco, sem nenhum artüício, por cinco
carregadores, dos quais só um toca o corpo na altura dos calcanhares;
dois outros sustentam o dorso com um pano enrolado para formar
uma cinta que, se impregna de sangue. Os dois últimos levam as
extremidades do patíbulo.
3 .0 - O corpo só foi colocado no Sudário no fim do transporte,
durante o qual uma pequena parte do sangue se coagulou transversalmente,
nas pregas da cinta sôbre a pele das costas. :tstes coágulos
em forma de meandros irregulares darão lugar ao "fluxo transversal
posterior", ao se decalcarem, ainda frescos sôbre o Sudário.
4.0 - Colocam o corpo no Sudário ( provàvelmente sôbre a pedra
chamada da unção) . No último instante devem ter cessado de sustentar
o dorso com a cinta que, embebida de sangue, teria manchado
muito o Sudário.
5.0 -- Despregam as mãos; retiram o patíbulo e puxam os membros
superiores, cruzando as mãos diante do pubis.
6.0 - Dobram em seguida a outra metade do Sudário, por cima
da cabeça (epi ten kephalen ) , cobrindo a face anterior do corpo.
G. - Deposição no túmulo.
Finalmente, graças ainda à rigidez cadavérica , que no caso era
extrema, puderam com facilidade colocar o corpo no túmulo. Introduziram-
no lateralmente, segurando-o por baixo e estando todos os
transportadores do mesmo lado, o da entrada . ( 3 ) . É assim que se
coloca no leito um operado adormecido, e a rigidez facilitava bastante
o transporte. Notemos que se poderia pensar que o corpo
tivesse sido colocado, provisoriamente, não sôbre a pedra sepulcral
do fundo, mas em uma antecâmara hoje desaparecida, enquanto esperava
o embalsamento definitivo, apó, o sábado. Esta hipótese mereceria
uma discussão mais aprofundada, mas sai dos limites dêste
estudo.
NDta do Traduwr . Discordaremos d o A . no que s e refere a esta reconstituição
que não nos parece estar de acôrdo com a arqueologia e com o qule
se pode ver hDje etn dia ao visitar o S. Sepulcro em Jerusalém: 1 .0) A pedra
sepulcra1, destinada a receber ci cadáver não está, nem estava, atravessada no
sentido da largura e sim ao longo da parede direita. A aludida rigidez cadavérica,
também neste caso, deve ter facilitado a deposição, basrar.do que um dois transponadores
segurasse os pés e o otutro a cabeça . 2 .0) A porta da câmara mortuárin
era por demais estreita e baixa (hoje um pouco mais alta) não pemnitindo,
absolutamen, a passagem do transportador aCI lado do cadáver, e muito menos
a entrada com o cadáver em posição transversal. Só podia êste, ali, ser introduzido,
ao comprido, e sc-m ninguém ao lado, devendo os que o carregavam ir suslentar:.:l
o um os pés e outro a ca .. eça. 3.0) A câmara mortuária era muitO! pe-
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queua (não medirá mais do que 2m x 1,95m) não sendo possível manobras lá dentro. 4.0) Quanto & dúvida sugerida pelo A. sôbre sB o corpo teria ficado pr&
;-:!sõriamente na antecâmara, parece-me que temos a resposta nos próprios Evangelhos
quando ros dizem que José de Arimatéia "advolvit Sllllwn magnum ad
ostium monumenti, et abiit" i. e. "rolou uma grande pedra para a porta do se
pulcro e retirou-se" ( Matieus, 27,60 ; cf. Marcos, 15,46) . Ora, esta pedra era
justamente ·a que separava a câmara mcArtuária da antecâmara, de acôrdo com o
que nos dizem João e Lucas de Pedro• e João que no Domingo da Ressurreição
de-vem se inclinar para ver os panos depositados onde estivera o Senh-* (Cf.
Jo., 20,4s) "Correram os dois juntamente, mas aquêle outro discípulo correu
mais depressa do que Pedro 6 chegou primeiro ao túmulo .
E como se
i11clinse viu os panos ali deposirados, mas não entrou . Cheu então Símio
Pedro que o seguia e lelltiou no túmulo e viu os panos jacentes . . . então entrou
também aquêle discípulo que chegara primeii'o ao túmulo e viu e creu". Lc. 24,12
" Pedro correu ao túmulo e, inclinando-$e, viu os panos • . . "
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