A Paixão de Cristo
Segundo o
cirurgião CAPÍTULO 22
CHAGAS DAS MAOS
Sabemos que a iconografia cristã costuma colocar os cravos nas
palmas das mãos do crucificado. Poderíamos, no entanto, citar numerosas
exceções a esta regra. Eu mesmo encontrei uma, por ocasião
de minha audiência, na Páscoa de 1 934, na sala do "Tronetto", no
Vaticano. Trata-se de grande crucÜi:lfo de marfim, dado pelos cavaleiros
de S. João de Jerusalém a S . S . o Papa Pio IX . Os cravos
estão ainda um pouco baixos, mas já nitidamente em pleno carpo.
Pode-se dizer outro tanto, por exemplo, de um Rubens do
Rijkmuseum de Amsterdam e de três Van Dyck em Antuerpia, Bruxelas
e Bruges. Pelo contrário, tenho sob os olhos a fotografia de um
crucifixo do comêço do século XVII, de marfim que, além de seu
valor estético, é quase que perfeito, segundo meu parecer, sob o
ponto de vista anatômico. Os cravos estão exatamente na dobra de
flexão do punho, os polegares em oposição nas palmas e em ligeira
flexão. Por acréscimo, os dois pés estão pregados diretamente sôbre
a haste vertical da cruz e o direito por trás do esquerdo (vide
fig. 20). O encarregado do Museu de Etnografia do Trocadero, o
Sr . R . Gruenevald teve a gentileza de me enviar esta fotografia
após ter lido a primeira edição do meu folheto "Cinq Plaies".
A crucifixão nas palmas das mãos é simplesmente a tradução
plástica das palavras do profeta Davf: "Foderunt manus meas -
Perfuraram minhas mãos", e das de Jesus a Tomé: "Vide manus
meas - Vê minhas mãos". Os artistas não foram pesquisar mais
além, para êles as mãos são as palmas. Veremos, no entanto, que
artistas bolonheses do século XVI foram os primeiros talvez a
reconhecer experimentalmente a impossibilidade desta crucüixão
das palmas .
Tem-se, com freqüência, objetado à minha localização carpiana,
o fato dos estigmatizados. A isto já havia respondido, por
antecipação, na 1.& edição de "Cinq Plaies" (pág. 8 ) . Mas o havia
feito, como acontece com freqüência, de maneira muito concisa,
em apenas oito linhas, esquecendo-me demasiadamente de quão
poucos leitores sabem ler, na era do cinema e dos "Digests" ( ou
antes indigestos) .
É certo que a maioria dos estigmatizados, refiro-me àqueles
que foram reconhecidos pela Igreja, desde S. Francisco de Assis
até nossos dias, têm suas chagas na região metacarpiana, nas palmas
para o que é da face anterior da mão. Mas, são êstes estigmas
a reprodução exata das chagas das mãos de Jesus? Eis aqui tôda
a questão.
É bem pouco provável. - Convém notar, de inicio, que estas
•'chagas" não têm sempre a mesma aparência. São mais ou mencs
superficiais ou profundas, desde a simples escoriação até a chaga
hiante.
Algumas vêzes ali se vê como em S. Francisco, uma espécie
de excrescência carnosa, da qual não aceitaria o encargo de definir
a natureza anatômica, porque não se assemelha a nada
daquilo que já pudemos ter visto. No entanto, vem ela claramente
afirmada e muito exatamente descrita nos Fioretti, que passo a
traduzir de seu delicioso italiano do século XIV : "E assim pareciam
cravadas suas mãos e 8eus pés com cravos cujas cabeças
estavam nas palmas das mãos e nas plantas dos pés, fora da carne.
Suas pontas sobressaiam nos dorsos das mãos e dos pés onde
estavam retorcidas e rebatidas; isto de tal maneira que sob sua
retorção e rebatimento que sobressaia todo por sôbre a carne,
poder-se-ia fàcilmente passar um dedo da mão como por um anel.
As cabeças dos cravos eram redondas e negras." ( 1 ) - Uma
outra passagem afirma que êstes cravos eram móveis, nos túneis
que os alojavam, através as mãos e os pés; verificou-se isto clara mente
após sua morte.
Pode-se, pois, responder afirmativamente a minha pergunta?
Não! stes estigmas não são a reprodução exata das chagas do
Salvador. Não era assim que se apresentavam quando O depuseram
na Mortalha. Não foi assim que as mostrou aos fiéis naquele corpo
glorioso em que quis conservá-las. ..
Não insistirei na inverossimilhança flagrante das cabeças de
cravo nas plantas dos pés, uma vez que os cravos foram, sem a
menor sombra de dúvida, fincados nos dorsos dos pés.
Acrescentemos que a localização exatá dos estigmas não tem
sido sempre a mesma, mas que vai ela variando por tôda a extensão
da zona metacarpiana e até perto do corpo. É necessário portanto
concluir que os estigmas não nos poderão dar informação
alguma sôbre a localização nem sôbre a forma das chagas da
crucifixão. (Vêde também pág. 1 1 3 , Chaga do Coração ) .
Aliás é êste o sentimento dos próprios estigmatizados; suas
chagas não têm para êles senão valor místico. Apenas citarei uma:
Teresa Neumann, embora suas manifestações sobrenaturais não
tenham ainda sido homologad&s pela autoridade legítima. Teresa
disse a um de meus amigos: '·Não creia que Nosso Senhor tenha
sido pregado nas palmas das mãos, no local em que tenho meWi
estigmas. stes sinais não têm senão uma significação mística.
Jesus devia estar fixado sôbre a cruz mais solidamente."
Uma vez que recorremos aos místicos, pedirei permissão para
acrescentar com tOdas as reservas que convém e com o maior res ·
peito possível, esta revelação da SSrna. Virgem a S. Brígida (Liv. 1 ,
c. 1 0 ) : "As mãos d e meu Filho foram transpassadas n o local em
que os ossos eram mais sólidos - "Perforatae fuerunt Filio meo
manus in ea parte, in qua os solidius erat."
Concluamos então. Sem querer, pois quase que não o podemos,
discutir o mecanismo somático do milagre (porque continuo
a admitir que êstes estigmas têm uma causa preternatural ) , é
permitido pensar que a impressão dêles geralmente se faz no local
em que o estigmatizado crê que estavam as chagas do Senhor .
Parece isto providencialmente necessário, para que o estigmatizado
não fique, desde o início, desorientado por estas manifestações e
que conservem perante sua alma seu significado místico. Aliás,
seria bom confessarmos logo que nada compreendemos neste mistério.
Se, por um impossível, tal prova me fôsse imposta, crejo
qu os estigmas estariam talvez . . . não nos carpos, mas em plenas
palmas, para me fazer aprender a humildade!
Em todo o caso, os textos sagrados, aos quais devemos tôda
nossa submissão não são tão explícitos. Não falam de palmas, mas
de mãos. Aos anatomistas compete dizer o que é a mão. Os de
todos os tempos e de todos os países se entendem muito bem sôbre
a questão: a mão se compõe do carpo, metacarpo e dedos.
Ora a chaga que nos ocupa é fàcilmente vista sôbre o Sudário.
As duas ·mãos estão cruzadas pouco mais ou menos diante do
pubis ; a direita se alonga até o bordo externo da raiz da coxa
esquerda ; a esquerda passa diante do punho direito que esconde
completamente e ultrapassa muito menos a linha mediana. :t isto
devido ao fato de que a espádua direita está um pouco mais baixa
que a esquerda, como se pode verificar perfeitamente na imagem
dorsal.
Recordemos, de passaiem, que o punho é uma região mal
delimitada, intermediário entre a mão e o ante-braço, compreende
as auas fileiras de ossos do carpo, articulados entr si, mais suas
articulações com o ante-braço e com o metacarpo ( rádio carpiana
e rádio metacarpiana ) . O ante-braço termina e a mão começa
na rádio-carpiana acima do carpo.
Em cada mão, não se vêm senão quatro dedos. Os polegares
não são visíveis, veremos por que, e estão certamente em oposição
escondidos nas palma das mãos.
No dorso da mão direita cujo punho está escondido pela esquerda,
não há sinal de chaga. Sôbre o dorso da mão esquerda
que passa adiante da outra, vê-se pelo contrário uma chaga das
mais nítidas, que se pode estudar em tôdas as suas minúcias.
Está formada por uma imagem arredondada, de onde parte abundante
fluxo de sangue, que torna a subir obliquamente para o alto
e para fora (em posição anatômica ) semelhante à do soldado em
guarda, para atingir o bordo c ubital do ante-braço. Um outro
fluxo mais tênue e recortado remontou até o cotovelo. Seguiu,
ao que parece, um sulco por entre dois grupos musculares extensores;
de trecho em trecho escapava para o bordo cubital, no
sentido da gravidade.
Na cruz, a grande hemorragia principal era, está claro, vertical,
seguindo a lei da gravidade. Pode-se calcular, de acôrdo
com o ângulo dêste fluxo com o eixo do ante-braço, qual era a
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obllquidade dêste em relação à cruz. Fazia com a vertical um
ângulo de cêrca de 65°.
Aliás isto quadra, perfeitamente, com as experiências que
empreendi sôbre o alongamento possível do membro superior, que
não pode ultrapassar os 4 ou 5 em, e as construções geométricas
que executei. Se se supõe que os braços foram pregados mais ou
menos transversalmente (o que se faz por si mesmo, ao se esticarem
os braços para serem pregados no patíbulo), é impossível
abaixar o corpo mais do que êste ângulo dos braços em 65° com
a vertical. Eis por que:
Muito se tem falado do alongamento dos braços por deslocação
e tenho encontrado dificuldades em convencer bons amigos do
Sudário, mas pouco anatomistas ; trata-se de nos entendermos. A
deslocação não se podia fazer a não ser nas articulações das espáduas
e dos cotovelos. Uma luxação, quer de uma quer de outra,
teria por efeito encurtar e não alongar. Além disto, o cotovelo é
uma articulação em dobradiça, impossível de se luxar por simples
tração no sentido do eixo. Na espádua, pelo contrário, as duas
superfícies, uma, a umeral, esférica, a outra, a da omoplata, quase
chata, podem se separar um pouco se se distende, por tração violenta,
os ligamentos articulares (como se vê produzir-se na base
de um dedo quando se o puxa fazendo estalar ) . :2ste alongamento
pode aumentar um pouco por um movimento de balança da omoplata,
mas tudo isto irá no máximo a uns 4 ou 5 em.
Se, por outro lado, se quer determinar o alongamento necessário
do braço quando o pêso do corpo o faz passar de 90° ao
ângulo de posição definitiva, basta calcular a hipotenusa do triângulo
do qual dois lados são o comprimento do braço, em posição
inicial, e o outro o abaixamento da espádua com o corpo. Admitindo,
em média, 55 em entre esta espádua e o cravo na mão, um
abaixamento de 90° para 45° dá uma hipotenusa de 77 em. O
braço de 55 em se teria alongado 22 em?! - Ao contrário, as
construções mostram que de 90° a 65°, com abaixamento de 25 em,
o braço não se alonga senão 5 em o que, segundo meus cálculos,
é o máximo possível. - De nada adiantaria supor-se uma posição
inicial oblíqua e não transversal; porque quanto mais obliqua fôr
esta posição inicial tanto maior alongamento do braço pedirá o
abaixamento do corpo. Assim, por exemplo, de 65° a 45°, com
abaixamento de 26 em somente, ter-se-ia um alongamento do
braço de 10 em; e de 65° a 35°, com abaixamento de 55 em,
ter-se-ia um alongamento de 30 em.
Que me perdoem todos êstes algarismos! Queria encarar o
problema sob todos seus aspectos; depois disto, podemos dizer que
a anatomia e a geometria estão de acôrdo: tudo concorre a me fazer
pensar que os braços foram cravados mais ou menos transversalmente
e depois desceram até os 65°. - E foi precisamente êste
Angulo que medi na Santa Mortalha.
Mais tarde, como última experiência, depois de ter terminado
e impresso as "Cinq Plaies", depois de ter feito modelar por
Villandre seu crucifixo, fornecendo-lhe com exatidão tôdu as angulações, eu mesmo haveria de crucüicar um cadáver para veriíicar
estas angulações, haveria de lhe estender os braços mais ou
menos transversalmente sôbre os braços da cruz, sem medir ângulo
algum, ràpidamente, como um bruto carrasco com pressa de
acabar sua tarefa, e os pregaria em poucos segundos. E, ao erguer
a cruz à vertical, êstes braços tomariam, por si mesmos, um ângulo
que hav:eria eu de medir e que haveria de ser exatamente 65°.
(Vêde cap. X ) .
Quando s e olha mais d e perto o punho esquerdo estampado
no Santo Sudário, percebe-se que há dois fluxos principais de
sangue, oriundos de uma mesma zona central que é a chaga do
cravo. :l!:stes dois fluxos, ligeiramente divergentes, formam um
ângulo de cêrca de 5°. Bastante meditei sôbre esta imagem estranha
(são estas as mais instrutivas e as mais verdadeiras em todo
êste estudo) sem conseguir descobrir-lhes a significação. Creio que
hoje a descobri, atribuindo-os à mudança da posição do corpo.
Vimos no capítulo III, B (sôbre a causa determinante da
morte) que a suspensão pelas mãos provoca nos crucificados um
conjunto de caimbras, de contrações que vão se generalizando até
o que chamamos de "tetania". Atinge ela, por fim, os músculos
inspiradores, impedindo a expiração ; os supliciados, não mais podendo
esvaziar os pulmães, morrem por asfixia. Podem no entanto,
escapar momentâneamente a esta tetania e à conseqüente asfixia,
soerguendo o corpo mediante apôio nos pés. Neste momento, os
joelhos e os quadris se alongam, o corpo remonta e por conseguinte
o ângulo dos ante-braços com a vertical aumenta ligeiramente,
aproximando-se do ângulo reto primitivo. O corpo passa então
alternativament durante a agonia por uma posição de abatimento
e asfixia, e por outra de soerguimento e alívio. Em cada posição
o íluxo de sangue vertical, que se coagula lentamente sôbre a pele,
faz com o eixo do ante-braço um ângulo um pouco diverso. O
fluxo mais afastado da mão e que está a cêrca de 65°, corresponde
à fase de abatimento; o mais próximo da mão corresponde ao
soerguimento e dá 68° a 70° (Ver fig. 20, em baixo ) .
Chegamos agora a o objeto d e minhas pesquisas: onde foi
pregado o cravo? Dou logo minha conclusão: em pleno carpo.
A chaga dorsal da mão esquerda, a única visfvel sôbre o Santo
Sudário, não está, certamente, no nível do metacarpo, o que teria
acontecidc se o cravo tivesse sido fincado na palma da mão, e
isto, para um anatomista, aparece logo à primeira vista, com plena
evidência. O início dos dedos, marcado pela cabeça dos metacarpos,
é bem visível. A chaga está a uma distância que toma pelo
menos tôda a altura do metacarpo.
Não está, multo menos, no ante-braço. Bem o sei que certoa
l!e garantem que o cravo foi fincado na ro.rte iruerior do espaço
inter-ósseo rádio-cubital. Mas êste espaço se estreita, em ãngulCI,
para terminar na articulação râdio-cubital inferior. A suspensão
seria, sem dúvida, muito sólida deixando por cima do cravo todo
o maciço carpiano. Mas seria necessário remontar pelo ante-braço
até encontrar espaço, entre o rádio e o cúbito, com um intervalo
de pelo menos 8 mm, que é a largura do cravo. E isto colocaria
a chaga a urna distância do punho incompatível com a imagem
que vemos na Santa Mortalha.
Fiz a experiência no ante-braço de homem adulto, fendendo
completamente f) espaço rãdio-cubital : o ponto inferior em que o
cravo se deteve, entre os dois ossos, foi a 5 em acima do ponto de
flexão do punho. De resto, a isto não mais se poderá dar o nome
de mão e sim de ante-braço. As Sagradas Escrituras nos interditam
portanto tal localização.
A extrema delicadeza de M . de Vignon e do R . P . d' Armailhacq,
que estudaram o Sudário com tanto ardor como com
serenidade cientüica, permitiu o dar-me conta exatamente do
nível da chaga. Emprestaram-me fotografias, em tamanho natural,
das duas imagens ventral e dorsal da Mortalha. Sem possibilidade
de contestação, a chaga dorsal esquerda, sem estar no metacarpo,
está ainda na mão: está portanto no carpo. Medi, nestas
fotografias e em outros clichés diretos de dimensões quotadas, a
distância entre o furo e a cabeça (e:JÇtremidade distai) do terceiro
metacarpiano, ultrapassa um pouco os 8 em.
Para me dar conta experimentalmente do caminho que percorreu
o cravo, fiz a crucifixão da mão, depois radiografei-a e dissequei
as peças. Mas, recordemos, primeiro, algo sõbre a anatomia
dessas partes.
No que se refe à palma serei breve. Se o cravo fõr enterrado
como tradicionalmente se o faz, em plena palma, entre o 3 .0
e o 4.0 metacarpo, perfurará a pele e a aponevrose palmar, para
ir ferir a arcada arterial superficial, escorregará entre os tendões
flexores, atravessará os músculos interósseos e tornará a sair entre
os tendões extensores. O corpo uma vez suspendido se apoiará
sõbre o cravo. Em quais órgãos transversais poderia então êste se
apoiar? Algumas fibras transversais da aponevrose palmar; diante
das cabeças dos metacarpianos, um magro ligamento palmar transversal
; mais abaixo, no nível da comissura, outro pequeno ligamento
palmar. Os que já dissecaram mãos, sabem que é murto
pouca cousa. Todos os órgãos siio verticais. Restaria então a pele
que, com tOda a certeza, se rasgaria sob a tração até a comissura.
Não ignoro a experiência de Donnadieu, que em 1903, publicou
um livro acerbo e cheio de preconceitos, para provar que
o Santo Sudário é urna pintura, hipótese hoje abandonada, tendo
as últimas exposições confirmado em cheio as averiguações de
1 898. Julgando pois que a palavra "mão" não pudesse se entender
senão da região metacarpiana, curioso preconceito, quis êle provar
que a crucifixão na palma podia ser sólida. Executou-a em um
cadáver e verüicou que os tecidos não se romperam.
Infelizmente para sua tese, o autor nos copfia em sua perfeita
sinceridade, - que se sente triunfante, embora um tanto apressadamente
- detalhes e uma fotografia que destroem completamente
as conclusões de sua experiência. Declara que o cadáver, que lhe
foi fornecido por estudantes de medicina, em Lião, tinha os dedos
em flexão na palma, mas de tal forma rígidos que não lhe foi
possível estendê-lo completamente. Eis uma impossibilidade que jamais encontrei em cadáveres não ressequidos e então eis-nos em
-condições bem diversas e distantes das condições de u'a mão viva.
A fotoçafia mostra, com efeito, pendurado por uma só mão
(o que prova demais, nada prova) , um pobre cadàverzinho emaciado,
descarnado, com os dedos, realmente, rígidos e dobrados.
Para quem frequentou, por longos anos, salas de anatomia, está
patente que se tratava de um cadáver preparado para a disse
cação e sofrivelmente ressequido, o que explica a rigidez dos
dedos. Fica, nessas condições, extremamente leve. Por fim, as injeções
arteriais, aplicadas para a conservação do cadáver, modificam
completamente a resistência das partes moles aumentando-a
consideràvelmente, e nada se poderá concluir de experiência feita
em corpo tão diferente de um corpo· vivo.
O cadáver por mim crucüicado (Ver capitulo X) era também
um corpo bastante leve e preparado para a dissecação, mas perfeitamente
fresco e flexível. Aliás, isto para mim faria pouca dilerença
uma vez que não se tratava de prova de resistência (pois
já a tinha feito, como veremos, em um braço vivo) e sim de expe.
riência de angulações.
Para se aproximar das condições de um vivo, seria necessãrio
operar em um cadáver fresco, mas a lei não permite tocá-lo a
não ser 24 horas depois da morte. No entanto, há uma solução
bem melhor, que é o usar peças de amputação. Foi isto o que fiz.
Sabe-se que os tecidos não morrem a não ser pouco a pouco, após
o último suspiro; durante um tempo mais ou menos longo, os
músculos e os nervos reagem ainda às excitações elétricas e mesmo
mecânicas; veremos que isto não tem sido inútil. Tudo somado,
minhas experiências têm o valor de ter sido feitas em mãos realmente
vivas, com exceção da circulação do sangue, uma vez que
foram feitas logo após a amputação do braço.
Fiz a seguinte experiência: acabando de amputar um braço,
.no têrço superior, de um homem vigoroso, enterrei meu cravo
de 8 mm de lado (igual ao cravo da Paixão) em plena palma, no
3.0 espaço. Suspendi devagarzinho ao cotovelo 40 quilos (i . e .
metade do pêso de um homem que tivesse cêrca de 1 ,80 m ) . Depois
de 10 minutos, a chaga se havia esticado e o cravo estava na
altura das cabeças metacarpianas. Dei então uma sacudidela muito
moderada no conjunto e vi o cravo franquear bruscamente o ponto
do espaço retraído pelas duas cabeças metacarpianas e dilacerar
bastante a pele até a comissura. Uma segunda ligeira sacudidela
fê-lo arrrancar o que restava de pele.
Ora, não foi um pêso de 40 quilos, mas de cêrca de 95 que
exercia sua tração em cada cravo das mãos do Crucificado. Sabese
com efeito que a decomposição de um pêso P -em duas fôrças
p
simétricas oblíquas dá componen superiores a --. Valem elas ----, sendo x o ângulo das componente11 com a Yertical
2 COS. X
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Um corpo de 80 quilos, apoiado nos dois braços em ângulo de
65° com a vertical, exercerá portanto em cada um dêles urna tração
80 quilos
de -----, i o e o cêrca de 95 quilos.
Um trabalho aparecido após o meu, panfleto viperino - causa
espanto o ver-se aceitar como tese de doutorado em medicina, -
contendo um bom terço de exegese rabínica, pretendeu contradizer
esta experiência: apresentou um cadáver crucificado nas palmas,
O autor que, diga-se de passagem, conhece muito mal a correção
e a língua francesa, diz-nos que se trata de um afogado imerso
durante 3 dias. Não discutirei esta experiência que não provaria
senão uma causa, uma ve:.. que a minha subsiste : a resistência dos
tecidos da palma de um &fogaào de 8 dias é maior que a de um
vivo. Ora, nós discutimos o caso de um vivo. Minha experiência
foi feita em um braço vivo, guarda per consguinte todo o seu valor
e somente ela é que vale no nosso caso.
Esta experiência de crucifixão não foi certamente a primeira,
encontrei outra, após a 1 .a. edição de minhas "Cinq Plaies", um
testemunho precioso em um velho livro italiano, que meu bom
amigo M . Pouché, membro da Corp.issão dos "Cultores Sanctae
Sindonis", (Devotos da Santa Mortalha) conseguiu encontrar. Mons.
Paleotto, Arcebispo de Bolonha, depois de ter visto com São
Carlos Borromeu, em 1578, a "Santa Sindone" em Turim, dela fêz
uma descrição detalhada, que é talvez a primeira (Bolonha, 1598 ) .
Uma cópia muito minuciosa que lhe está anexa, mostra as imagens
sanguíneas com soas côres. É a única cópia de algum valor que
conheço.
É um estudo maravilhoso quanto à intuição, dada a flagrante
ignorância do autor em anatomia.
Por exemplo, demora-se longamente em mostrar que o cravo
saiu "na juntura chamada pelos anatomistas Carpa". Carpo é
bem exato, mas ignora que êste carpa é um rnassiço de ossos formado
por 8 ossinhos, distintos, articulados entre si, parte integrante
da mão e que a junta de que fala, a articulação rádio-carpiana,
está acima do carpa. Depois, constrói êle tôda uma teoria, segundo
a qual o cravo teria sido fincado no alto da palma, mas obliquamente,
em direção ao braço para tornar a sair na dita "junta".
Isto é evidentemente impossível anatõmicamente, e disso fiz a experiência.
Mas já aqui está a "manus" que atrapalha o exegeta!
Ainda há pouco, verifiquei entre contemporâneos esta preocupação
de conciliar as Escrituras com a falsa. concepção de anatomia (o que
era também uma mania de meu amigo Vignon ) .
Acrescenta êle, é isto o que mais nos interessa, que o cravo
não foi, em todo o caso, fincado diretamente na palma, "porque o
cravo teria sustentado o pêso do corpo, mas por êste pêso a mão
se teria dilacerado, como mostrou a experiência realizada por pintores
e escultores de talento em cadáveres, para dêles fazer o retrato.
- "Et questo perche il chiodo non havrebbe retto il corpo;
ma sarebbesi per lo peso stracciata la mano, secando l'esperienza fattane da i pittori e scoltori valenti in corpi morti per caveme i
ritratti". - O Rev. Pe. Scotti, salesiano, doutor em medicina e
doutor em ciências, que fêz comigo a edição italiana das "Cinq
Plaies" ( Turim 1 940) me fêz observar que estas experiências não
datam da Idade Média mas da Renascença, precisamente daquêle
século XVI que viu florescer os estudos anatõmicos. Isto é digno de
nota em face das hipóteses sempre ressuscitadas que querem atribuir
a Santa Mortalha a um falsário medieval.
Eis-nos pois diante de criteriosos predecessores anônimos, do que
muito me alegro pelo bom senso da humanidade em geral, e dos
artistas em particular.
É portanto coisa certa: os cravos não puderam ter sido fincados
nas palmas das mãos sem que as dilacerassem ràpidamente ;
logo, é necessário procurarmos outro local.
Dir-me-ão que o pêso do Crucüicado não se exercia todo inteiro
nas mãos. Não falo da fixação dos pés que poderia aliviar
sensivelmente esta tração. Estando os joelhos dobrados, o cravo
dos pés não suporta senão uma parte infima e negligenciável do
pêso. Serve apenas para impedir que os pés se afastem da cruz:
pude claramente verüicar isto ao crucüicar um cadáver. (Vede
capítulo X) .
Objetarão ainda que os braços poderiam ter estado ligados,
por meio de cordas, à barra transversal da cruz ; por outro lado
o períneo poderia estar apoiado sôbre o suporte (sedile ) passado
entre as coxas. Nestas condições, a fixação das mãos não teria tido
necessidade de ser tão sólida; uma parte do pêso seria sustentada
por êstes dois artifícios. Não tinha eu atinado imediatamente com
a contradição, o R . P . Braun o reconhece lealmente, para me
propor estas objeções e as responder. Veremos como o raciocinio
nos conduzirá a eliminar êstes dois adventícios.
Vimos no capítulo 11 (B, 6.0) que os cravos eram o processo
mais freqüente, mesmo para os escravos. As cordas eram mais raras,
salvo para alguns países como o Egito. Que se .tenha alguma
vez associado cordas e cravos é cousa que texto algum sugere,
como isto seria inútil, creio que o podemos negar ousadamente.
Quanto ao "sedile", cuja existência é suposta por algups textos
e afirmada por S. Justino, seu nome não se encontra senão uma
vez, em Tertuliano. Já o estudamos no capitulo II (B, 4 ) e concluimos
que estava bem longe de ser constante seu uso. Só era
acrescentado ao estipes quando se queria prolongar deliberadamente
ao máximo o suplfcio, por produzir eficazmente êste efeito.
Podiam os crucificados graças a êle, resistir por mais tempo à
tetania asfixiante, uma vez que a tração do corpo não mais se
exercia inteiramente sôbre as duas mãos.
Podemos desde logo supôr, dada a agonia relativamente muito
curta de Jesus, que sua cruz não comportava êste suporte. A associação
de cordas aos cravos, se bem que não absolutamente extranha
história da crucifixão, teria também prolongado a agonia.
Mas, outro será o motivo que nos forçará a não admitir o
emprêgo dêstes dois processos e a sustentar a crucüixão feita ex-
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clusivamente por cravos. te motivo é o abatimento do corpo
sôbre a cruz.
Podemos agora reconstituir muito exatamente a crucifixão, tal
qual foi feita. O patíbulo ( i . e . a trave horizontal da cruz) , carregado
ao local de suplício pelo condenado, era lançado à terra, para,
em seguida, ser o réu estendido sôbre êle. Os braços esticados
pelos carrascos ficam naturalmente paralelos ao patíbulo, fazendo
um ângulo de 90° com o corpo. Os carrascos tomam as medidas e,
com qualquer instrumento perfurador, esboçam os buracos na
trave. As mãos, bem o sabem êles, serão fáceis de perfurar, mas
na madeira os cravos entram com menos facilidade. Depois, cravam
uma das mãos, puxam a outra e a cravam também. O corpo
de Nosso Senhor já reproduz o. T da cruz, formando os braços
e o patibulo um ângulo de 90° em relação ao corpo.
Colocam então o paciente de pé, erguendo as duas extremidades
do patíbulo, que içam até engancharem-no no alto da haste
vertical da cruz, o que vem a constituir a cruz em Tau. Neste
momento o corpo se abate, alongando os braços que passam de
90° a 65° Não falta senão pregar os dois pés, como o veremos,
um sôbre o outro, com um único cravo, dobrando os joelhos que
logo tomam sua posição de abatimento. Formam os joelhos UJ;n
ângulo posterior de cêrca de 120°; os quadris e os tarsos formam
um ângulo anterior de mais ou menQs 150°.
Quando, para escapar à asfixia, o corpo se endireitar apoiando-
se sôbre o cravo dos pés, os braços voltarão para a horizontal,
mas, segundo o Sudário, não ultrapassarão os 70°. Ao mesmo tempo,
os ângulos dos joelhos, dos quadris e dos tarsos se abrirão.
Já tinha eu calculado todos êstes ângulos da posição de abatimento,
ntes mesmo de qualquer experiência, tendo como certa
uma descida do corpo de 25 em, o que corresponde à passagem do
braço de 90° a 65° (com um comprimento de 55 em da espádua
ao carpo) .
Quando, bastante mais tarde, crucifiquei um cadáver inteirQ
(Cap. X) precisei fazê-lo horizontalmente sôbre a cruz de tábuas,
já pronta, que me preparara de antemão meu amigo o Prof. Hovelacque.
Preguei, portanto, os braços a 90° ( o gesto é verdadeiramente
automático ) . Para os pés, fixei-os em hipertensão máxima,
de cheio no ramo vertical. Ora, quando ergui a cruz para
W"ertlcal, os braços passaram por si mesmos para os 65°, os joelhos
para os 120°, os quadris e os tornozelos para 150°, exatamente como
o havia calculado.
O que se deve reter de tudo isto, é o abaixamento do corpo,
que desce de 25 em, diferença entre a posição primitiva e a de
abatimento. É evidente que êste abatimento não poderá se produzir
a não ser que o corpo não repouse sôbre um suporte peri.a
eal nem esteja sustentado por cordas. Houve o abatimento, logo
não houve nem cordas nem "sedile" ; o corpo só estava sustentado
pelos cravos da mão, o cravo dos pés, em posição de abatimento
não sustentava causa alguma. Ser-nos-á portanto, necessário encontrar
uma região da mão na qual os cravos se possam fixar
solidamente e suportar esta carga de 95 kg por cravo. Um carrasco,
bom conhecedor de seu oficio, devia saber que uma palma
fixada por cravo se rompe.
O arrazoado me parece bastante bem construido para resistir
aos ataques. O R . Pe . Braun ( que prudentemente não se afasta
de sua especialidade a não ser para mostrar, por um único exemplo,
a possível fragilidade de minhas construções anatômicas) mo concede
com a menção "muito bem". Quando muito evoca êle o fato
de estigmas que acabamos de responder há pouco, o têrmo "mão''
empregado pelas Sagradas Escrituras que também já explicamos,
e a solidez de minha experiência de crucüixão nas palmas que foi
atacada (não contestada, como êle diz) em uma tese de inspiração
rabínica, cujo autor acabou aliás por concluir a inexistência de
Jesus! Minha experiência feita em braço ainda vivo, amputado
20 minutos antes, continua inabalável e suas conclusões guardam
tôda sua solidez.
Já poderia esperar aquilo de que o Pe. Braun me acusou
com alguma aparência de vrossimilhança, de cair num círculo
vicioso. Dou, com efeito, a impressão de me apoiar sôbre uma
imagem do Sudário para chegar a provar a autenticidade desta .
Não queria aproveitar a indulgência que me concede para evitar
de me defender.
Confesso que, se só pudesse me apoiar sõbre êsse único coágulo
do punbo, encontrar-me-ia em má posição dialética. Mas já verificamos,
e ainda veremos para os pés e para o coração, como tôdas
as imagens sanguíneas coincidem, sem exceção, e de modo espantosamente
preciso, com a realidade anatômica. É êste conjunto
cerrado, digamos mesmo, esta unanimidade de veracidade que
constitui uma presunção de verdade equivalente a uma certeza.
Se houvesse, ali, urna única exceção, poderia hesitar e não conceder
à Mortalha urna confiança que ia aumentando à proporção
que ia fazendo minhas experiências. Ainda mais se afirmou esta
confiança, quando vi o coágulo do punho, em vez de provocar
UIÍl só fluxo de sangue vertical, apresentar nitidamente dois, se
parados como estão por uma distância angular. Isto coincide manifestamente
com o que sabemos experimentalmente da morte por
asfixia e dos esforços de soerguimento feitos pelo Crucüicado. Seria
necessário vasar os próprios olhos para não ver, em tôdas estas
imagens sanguíneas, o puro reflexo da realidade.
Mas o R . P . Braun me perdoa o círculo vicioso. Muito bem,
diz êle, mas o que nos garante que tais imagens sejam de sangue
e não de uma tinta aplicada artificialmente por algum falsário?
Tôda a argumentação desabaria assim solapada pela base.
O leitor que seguiu atentamente minhas demonstrações anteriores,
já possui os elementos da resposta. Queira êle se reportar ao
capítulo I (E, 1.0). sôbre a formação das imagens sanguíneas; que
releia também no capitulo 4.0 (D, Coroação de- Espinhos) a análise
daquele coágulo formado na testa, nos obstáculos do capacete de
espinhos. Demonstrei, espero que com bastante clareza, que tôdas
estas imagens sanguíneas não podem ser outra cousa senão decai-
101
ques de coãgulos e de forma alguma manchas de tinta.Passo a
resumir minha demonstração: Têm êstes coãeuios um aspecto de
verdade, e uma naturalidade tal que somente a natureza os teria
podido fazer assim, e nós os podemos reconhecer como quem reconhece
antigos conhecidos. Somente êles ao se decalcarem é que
poderiam ler produzido imagens tão exatas. Lembremos que, só
imaginá-las antes mesmo de as pintar, seria necessário um conhecimento
verdadeiramente profundo da fisiologia sanguínea e astúcia
incrível para evitar todo e qualquer deslise denunciador do falsário,
que não poderia pensar em tudo. Por fim, executar urna pintura
com um colorante qualquer, mesmo e sobretudo com sangue, teria
como resultado tão somente manchas de contornos difusos, irregulares,
sem bordos nítidos e sem a infinita delicadeza nem a minúcia
espantosa de detalhes que apresentam as imagens do Santo Sudãrio.
De hã muito reclamamos tôdas as experiências respeitosas que
podem demonstrar a coisa cientificamente e estamos prontos à
executá-las segundo o plano premeditado. Mas por ora nada mais
podemos senão, pela análise dos retratos dêstes coágulos, afirmar
que isto não pode ser outra cousa senão sangue. Se exegetas se
recusam obstinadamente a admitir minhas razões, neste terreno
estritamente anátomo-fisiológico, consolar-me-ei, assim o espero,
com a adesão geralmente calorosa da classe médica.
Devemos, portanto, agora, determinar o local em que o cravo
foi fincado. De fato, na Mortalha, não foi no metacarpo. Um falsãrio,
notemo-lo de passagem, não teria deixado de representá-la. Neste
ponto, como em tantas outras imagens estranhas e em aberta contradição
com as tradições iconográficas, deveria êle se conformar
ao costume pois êsse "falso Sudário" se destinaria certamente à
contemplação dos fiéis. parece cada vez mais canhestro.
Ora, remontando para o alto da palma que se encontra? Uma
saliência transversal constituída pela reunião em sua parte superior
das proeminências tenar e hipotenar, músculos curtos do polegar e
do mínimo. Atrás desta saliência se encontra um feixe fibroso espêsso,
da grossura de um dedo, solidamente inserido por dentro, no
ôsso unciforme e piramidal, e, por fora, no trapézio e escafóide.
Passa em forma de ponte diante dos tendões flexores que liga solidamente,
fechando o canal carpiano e dando inserção aos músculos
de duas eminências: é o ligamento anular anterior do carpo. (fig. 1 0 ) .
Acima desta saliência aparece uma cavidade que corresponde
à Junta de flexão principal do punho ; depois, vem a face anterior
do ante-braço. Parece, pois, natural, fincar o cravo, não na saliência
que forma o limite posterior da mão, mas na cavidade subjacente.
É pois, pràticamente, na junta de flexão do punho que se pousa a
ponta. Esta junta fica defronte do orifício marcado na Mortalha
no dorso do punho, a um pouco mais de 8 em da extremidade distai
do 3 .0 metacarpiano.
Ora, sabe-se que esta junta está exatamente diante do bordo
superior do ligamento anular que constitue um freio transversal,
extremamente resistente; a cirurgia dos flegmões nos ensina ter por
êles certo respeito. Por outro lado êste bordo superior se projeta
sôbre o carpa barrando a cabeça do grande ôsso. Todo o semilunar
e wn oouco do piramidal o ultrapassam pelo alto.
Se se examina um corte frontal do carpo, ou melhor ainda uma
radiografia de frente, vê-se que existe no meio dos ossos do carpa,
um espaço livre, limitado pelo grande ôsso, o semi-lunar, o piramidal
e o unciforme. Conhecemos tão bem êste espaço, que sabemos,
depois dos trabalhos de Destot, interpretar seu desaparecimento
como sinal de deslocação do carpo, primeiro estádio de grandes traumatismos
carpianos. Pois bem, êste espaço está situado precisamente
atrás do bordo superior do ligamento anular anterior e a junta de
flexão do punho (figs. 9 e 10).
Não cheguei a compreender tôda a importância disto senão
após minha primeira experiência, que passo a relatar: tendo feito
uma amputação de wn braço, no têrço superior, tomei logo depois
da operação wn prego de seção quadrada e de 8 mm de lado, como
os da Paixão, cujo comprimento havia eu reduzido a 5 em para
facilitar, depois, a radiografia. Tendo estendido a mão com as
costas numa tábua, coloquei a ponta do prego sôbre o meio da
junta de flexão do punho, e o prego bem vertical. Em seguida,
com wn grande martelo, bati o prego como um operário que quer
fincar uma estaca ou como um carrasco que sabe martelar com
fôrça.
Repeti a mesma experiência em várias mãos de homens, sendo
que a primeira foi feita sôbre mão de mulher. As verificações
foram sempre exatamente idênticas.
Atravessadas as partes moles,. o prego aborda o carpo e, apesar
de minha mão esquerda que o aperta, sinto-o obliquar, uriJ. pouco
para dentro, penetrar sem resistência e sem ruído para, em seguida,
inclinar-se um pouco, de sorte que a base fique pendente para os
dedos, a ponta para o cotovelo";-para tornar a sãir atravessando a
pele dorsal a 1 em mais ou menos acima do ponto de entrada,
o que verifico após ter arrancado o prego à prancha.
Radiografei tudo imediatamente ; pensava então a priori, que
o prego devia quebrar o carpa e atravessar provàvelmente o semilunar,
despedaçando-o. Os movimentos do prego durante seu percurso
fizeram-me logo suspeitar que havia encontrado caminho mais
anatômico.
De fato, na radiografia de perfil, o prego um tanto oblíquo
para trás e para o alto, passa entre as projeções do semi-lunar e
do grande ôsso que continuam intactas. (figs. 1 1 e 12).
A radiografia d e frente é ainda mais interessante: a sombra do
prego quadrado aparece retangular por causa de sua obliqüidade.
O cravo entrou no espaço de Destot; afastou, sem quebrar um só,
os quatro ossos que o limitam contentando-se em aumentar seu
talhe. (figs. 1 1 e 1 2 ) .
A dissecação d a peça m e confirmou a s verificações radiográficas.
Como o ponto de entrada, mediano, estivesse um pouco para
fora do espaço de Destot, a ponta tendo atingido a cabeça do
grande ôsso, escorregou para sua inclinação interna, caiu no espaço
e o atravessou.Os quatro ossos se afastaram intactos e solidamente
apertados pelo próprio afastamento, em tôrno do prego. :tste repousa,
por outro lado, no bordo superior do ligamento anular.
Poderíamos, como o faz S. João ao narrar que o crurifrágio :(oi poupado a Nosso Senhor, recordar a palavra profética: "08
non comminuetis ex eo - Não lhe quebrareis um só de seus ossos"
O ponto de saída fica, portanto, um pouco mais elevado e t1m
pouco mais interno que o de entrada. Se eu tivesse fincado o prego
um pouco mais para dentro do meio da junta de flexão, o que fiz
E'm outras experiências, teria caído direitinho no espaço de Destot,
que está um pouco para dentro do eixo do punho, no eixo do
3.0 espaço intermetacarpiano .
A obliqüidade do prego para trás e para o alto é unicamente
orientada pela disposição das superfícies dos ossos em volta do
espaço de Destot, porque se reproduziu, regularmente, em tôdas as.
experiências apesar de tôda minha resistência.
Repeti, depois, realmente, uma dúzia de vêzes a crucüixão da
mão, em braços recentemente amputados, mudando o ponto de im
plantação em volta do meio da junta de flexão. Em todos os casos
a ponta se orientava por si mesma, parecia escorregar pelas paredes
de um funil e se meter, espontãnearnente, pelo espaço preformado.
Se se experimenta enfiar o, prego mais abaixo, no ligamento
anular anterior do carpo, não se consegue perfurá-lo mas se escorrega
por cima e se vê o prego obliquar seja para o alto para o
espaço de Destot, seja para baixo para a palma, onde se perde,
e onde não poderá receber o pêso do corpo sem dilacerar a mão.
A última vez que dispus d·e mão fresca, tomei um bisturi
com lâmina de 8 rnm. Piquei-a na junta de flexão do punho empurrando-
o sem esfôrço, atravessei o carpo sem encontrar resistência
para tornar a sair no dorso da mão, sempre na mesma região.
Esta região, na mão de um homem normal, está sempre a cêrca de
8 em da cabeça do 3 .0 metacarpiano. E é a mesma distância que
medi no Santo Sudário.
Existe, portanto, ali uma passagem anatômica preformada, normal,
um caminho natural, em que o prego passa fàcilmente, onde
é mantido muito sàlidamente pelos ossos do carpo, estreitamente
fixados por seus ligamentos distendidos e pelo ligamento anular
anterior, sôbre cujo bordo superior :repousa.
A efusão de sangue deve ser moderada, quase que unicamente
venosa, o cravo não encontra nenhum artéria importante como nas
arcadas palmares, o que teria espalhado urna grande placa de sangue
em tôda a face dorsal da mão aplicada sôbre a cruz e teria podido
provocar grave hemorragia.
Seria possível que carrascos treinados não tivessem conhecido
empiricamente êste lugar apropriado para a crucüixão das mãos.
que reune tantas vantagens e é tão fácil de encontrar? A resposta
é clara. E é precisamente ali que a Santa Mortalha nos mostra o
sinal do cravo, ali onde nenhum falsário teria tido jamais a idéia
nem a ousadia de o representar.
Mas, estas experiências me reservariam ainda uma outra surprêsa.
Operava eu, e nisto insisto, sôbre mãos 'rivas ainda, logo
após amputação do braço. Ora, verifiquei desde a primeira vez e,
regularmente nas seguintes, que no momento em que o cravo atravessava
as partes moles anteriores, estando a palma para cima, o
polegar se dobrava bruscamente e, sobretudo, se opunha na palma,
por contração dos músculos tenarianos, ao mesmo tempo que os
quatro dedos se dobravam muito ligeiramente; provàvelmente por
excitação mecânica reflexa de tendões longo flexores.
Ora, as dissecações me revelaram que o tronco do nervo mediano
estava sempre gravemente ferido pelo cravo, seccionado, triturado
na altura do têrço, metade ou dois têrços, de acõrdo com
os casos. Mas sempre, em sua parte interna, que é Unicamente
sensitiva. Jamais estava totalmente seccionada. Sempre os nervos
do curto abductor, oponente e curto flexor, que se dirigem para
fora, neste nível do mediano, estavam intactos. A contração dêstes
músculos tenarianos, ainda vivos como seu nervo motor, se expUcava
fàcilmente pela excitação mecânica do nervo mediano. Não
pode, portanto; tratar-se de paralisia dêstes músculos. Pelo contrário,
o nervo mediano, estendido sôbre o cravo, com sua parte
externa, motora, ainda intacta, dela recebia uma excitação mecânica
a cada movimento. Jesus Cristo portanto agonisou, morreu e se
fixou na rigidez cadavérica, com os polegares opostos nas palmas.
Eis porque, no Sudário, as duas mãos vistas pelo dorso não apresentam
senão quatro dedos, porque os dois polegares estão escondidos nas
palmas. Teria um falsário sido capaz de imaginar isso? Teria ousado
representá-lo? Como resposta notemos que muitos copistas antigos
da Santa Mortalha acrescentaram os polegares ; como também afastaram
os pés e desenharam as faces anteriores com dois buracos
de cravos; ora, nada disto existe no Santo Sudário.
Mas, ai! os medianos não são somente nervos motores, são
também grandes nervos sensitivos. Feridos e estirados sõbre os
cravos, nos braços estendidos, como cordas de violão sõbre seus
cavaletes, devem ter provado dores atrozes. O nervo, parcialmente
seccionado, estendido sôbre o cravo por sua parte intacta, dêle recebia
também a cada movimento, uma -,iolenta excitação sensiüva .
Os que durante a guerra tiveram ocasião de ver estas chagas doa
grandes troncos nervosos, sabem que é wna das torturas mais horríveis
que se possa imaginar, a tal ponto que sua prolongação seria
incompatível com a vida, se logo não se estabelecesse wna espécie
de inibição ; na maioria dos casos acarreta a sincope.
Ora, Nosso Senhor, Deus-Homem, capaz de levar a seus extremos
limites a resistência física, continuou a viver e a falar até o
"Consummatum est" durante cêrca de três horas! E Maria sua Mãe
e nossa Mãe, ali estava ao pé da cruz!
Concluamos após esta verificação desconcertante para todo cristão
que sabe "compadecer" (não passa isto, no entanto, de uma
verificação estritamente objetiva) : o cravo da mão foi fincado num
espaço natu ral, o espaço de Destot, situado entre as duas fileiras
105
de ossos do carpo. Ora, o earpo faz parte integrante da mão para
todos os anatomistas de todos os tempos e todos os países, sendo a
mão constituída pelo carpo, metacarpo e dedos.
Podemos portanto, de acôrdo com a experiência, com o Santo
Sudário, e com as Santas Escrituras repetir com Nosso Senhor, no
sentido estritamente anatômico da palavra : "Vide manus", e com
Davi: "Foderunt manas meas".
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