A Paixão de Cristo
Segundo o cirurgião
Capítulo 10
Carregamento da Cruz.

Portanto, o condenado prévia
e devidamente flagelado, fazia a pé, sem roupas e carregando seu
patíbulo, o trajeto do tribunal ao local do suplício, onde o estava
esperando seu "stipes" (a haste vertical da cruz) no meio de verdadeira
floresta de outros semelhantes.
Digamos logo que a expressão "crucem portare - carregar a
cruz" (em grego, "stauron bastazein") não se encontra senão nos
textos gregos ou rabínicos (Plutarco, Artemídore, Chariton, Comentários
judaicos do Gênesis, Novo Testamento) . Em latim, só é encontrada
nas versões latinas da Bíblia : "Crucem portare, ferre, bajulare".
Como já vimos é por sinédoque, que a palavra cruz designa
a parte horizontal desta.
Entre os latinos, nunca se encontra a expressão "crucem ferre"
se bem já tenhamos visto a fórmula condenatória "pone crucem
servo". Mas, em compensação, se encontra a expressão "patibulum
ferre - carregar ou levar o patfbulo". Disto temos minuciosa descrição
feita por Dionísio de Halicarnasso (História Romana) . O
patíbulo era colocado sôbre as espáduas e braços estendidos transversalmente,
e em seguida amarrado nas mãos, braços e peito. Era,
portanto, só o patíbulo qúe o condenado carregava.
Como sempre, Plauto, entre outros textos que poderíamos citar,
resume tudo isto com uma fórmula lapidar: "Patibulum ferat per
urbem, deinde affigatur cruci - Que leve o . patíbulo pela cidade,
depois seja cravado à cruz" (Carbonária ) . "Patibulatus" era o condenado
carregando a cruz (Plauto, passim) .
A haste vertical da cruz ( o "stipes crucis" ) , pelo contrário,
esperava o condenado no lugar do suplicio. Cicero invectiva Labieno
que "in Campo Martio . . . crucem ad civium supplicium defigl et
constitui jussit - no Campo de Marte . . . mandou fincar e estabelecer
a cruz para o suplicio dos cidadãos" (pro Rabinio) . Esta expressão
"mandou fincar e estabelecer" que, em conseqüência da
endfadis tão freqüente em Cicero, melhor traduziríamos por "mandou
colocar permanentemente", encontra-se também nas Verrinas e
em Flávio José. Políbio cita mesmo o caso de um crucificado, em
Cartago, que foi enganchado a uma cruz que já tinha um outro
corpo.
Em Roma, o Montfaucon ( 2 ) era representado pelos Campos Esquilineos,
tornados célebres por Horácio e onde se elevava, segundo
Saglio (Dict. Daremberg) uma verdadeira floresta de cruzes, um
bosque de "stipites". Estava fora da Porta Esquilinea. Para os que
conhecem Roma, pouco mais ou menos na "Piazza Vittorio Emanuele",
um pouco além de Santa Maria Maior, para quem vem do
centro.
Um último argumento vem comprovar êste costume como bem
estabelecido. o patfbulo sozinho devia pesar _cêrca de 50 quilos e
a cruz inteira devia ultrapassar os cem quilos. Note-se que o carregar
.n patíbulo já não deixava de ser bem rude prova para um
homem que acabava de sofrer severa flagelação e, por conseguinte,
perdera boa parte de seu sangue e de suas fôrças. Como poderia
então carregar a cruz inteira que pesava mais de cem quilos? Porque
não se fala nunca em arrastá-la. Todos os textos trazem "portare,
bajulare", ou em grego: "Pherein, bastazein "carregar", mas
nunca "trahere, syrein - arrastar''.
Digamos, por fim, que o que carregava a cruz era precedido
pelo "titulus", um pedaço de madeira sôbre o qual estava escrito
o nome do reu e o crime pelo qual fôra condenado. O titulo era,
depois, fixado sôbre a cruz.
(2) N . do Tradutor . Localidade, lliluado outrora fora do perímetro urbano
de Paris, o:c.du ee erguia famoso cadafalso coDstruído DO séc. XDI.
Modo da crucifixão. - Tudo o que acabamos de dizer
&ôbre o fato de se carregar somente o patíbulo, sua fixação sôbre
a haste vertical, no próprio local do suplicio, supõe aquêle modo
que com tanta concisão e clareza expressou Firmicus Maternus
(Mathem . ) : "Patíbulo suffixus in crucem tollitur - (o . réu) pregado
ao patíbulo é içado para cima da cruz".
Se a crucifixão fôr feita com cordas, bastará enganchar o patíbulo,
sôbre o qual o réu fôra amarrado, em seguida ligar-lhe os
pés à haste vertical com alguns laços da corda. - Se, porém, a
crucifixão fôr ser feita com cravos, é necessário desamarrar o condenado
e deitá-lo por terra com as espáduas sôbre o patíbulo, puxar-
lhe as mãos e cravá-las sôbre as extremidades do patíbulo. Depois
então é que será levantado o réu já pregado no patíbulo e êste
será enganchado no alto do "stipes" (ou haste vertical) . Isto feito,
nada mais resta senão pregar-lhe os pés diretamente sôbre o
"5tipes".
Mui fàcilmente se deveria fazer êste soerguimento, sobretudo
quando a cruz não ultrapassasse os dois metros. Quatro homens
podiam com facilidade soerguer nas mãos, patíbulo e condenado
que deviam perfazer no máximo uns 130 quilos. Podiam ainda, a
rigor, fazer o paciente subir de costas uma pequena escada encostada
ao "stipes". Se a cruz fôsse mais alta, deveriam então servirse
de forquilhas para erguer o patíbulo, ou de duas escadas maio ·
res, encostadas lateralmente ao "stipes". De qualquer modo, não
havia grandes d ificuldades a superar.
Esta técnica é, por outro lado, sugerida pelas expressões empregadas
para designar a própria crucifixão. Tôdas elas incluem
uma idéia de elevar : em grego "epibainein ton stauron, anabainein
eis ton stauron", ambos significando "subir para a cruz" ; em latim
"in crucem ascendere", mesmo sentido, "in crucem agi, tolli, elevari"
i . e . "ser içado à cruz" e mesmo "in crucem salire" que supõe
um jôgo de palavras de Plauto que é difícil de traduzir, diz o
histrião Crisalo : "Facietque me Crucisalum ex Crysalo - Far-me-á
de Crisalo um Subidor-de-cruz". - É pois necessário eliminar completamente
a crucifixão sôbre a cruz inteira, deitada no chão, como
também a sôbre a cruz inteira vertical.
Parece que o próprio Jesus descreveu esta técnica quando predisse
a morte de S. Pedro : ''Extendes manus tuas et alius te cinget
et ducet quo tu non vis - Estenderás as mãos e um outro te cingirá
e te conduzirá para onde não queres". O estender das mãos
era a aplicação do patíbulo no tribunal, sôbre as espáduas e membros
superiores do condenado. Cingiam-no, depois, com uma corda
para o conduzir ao lugar do suplicio.
Acrescentemos, finalmente, que a fantasia dos carrascos podia
atuar, às vêzes, variando o modo regulamentar da crucifixão. Assim,
por exemplo, defumavam os crucificados ou os queimavam. Ou·
então lhes modificavam a posição clássica, pregando-os de cabeça
para baixo (Kato kara proselothentes) como o fizeram sob Diocleciano,
na Palestina (Eusébio) . Sêneca escreveu: "Vejo cruzes de
gêneros diversos, e alguns ali estão pregados de cabeça para baixo'•·
Consolatio ad Mareiam XX ) . Todos sabem que, segundo Origene!,
S. Pedro foi assim crucificado.
Guarda militar. - Tõda execução se devia fazer legalmente
com um aparato inteiramente militar, sob as ordens de um centurião,
como o testemunha Sêneca: "Centurio agmen periturorum
trahens - arrastando o centurião a multidão daquêles que vão pe
recer". O exército, que já se havia encarregado da flagelação, fornecia
a escolta para conduzir o cgndenado, do tribunal ao lugar do
suplício. Era ainda da escolta que se recrutavam os carrascos para
a crucifixão. Devia, por fim, o exército regular fornecer uma guarda
que velasse ao pé da cruz. Tinha isto por finalidade impedir que
amigos viessem arrebatar os supliciados à cruz. Devia, portanto,
haver urna guarda permanente até à morte certa dos condenados.
}'icava mesmo, não poucas vêzes, após a morte, segundo o testemunho
de Petrônio: "Ne quis ad sepulturam corpus detraheret - para que
não viesse alguém roubar o corpo para sepultá-lo". Que se fazia,
pois, dos cadáveres dos crucificados?
Sepultura e insepultura. - Em geral, os cadávere! ficavam
na cruz para servir de pasto às aves e animais selvagem.
Assim responde Horácio a um escravo inocente: "Non pasces in cruce
corvos - não alimentarás na cruz os corvos" (Ep. I, 1 6 ) . No Épodo
V, escreveu : "Post insepulta membra different lupi et Exquilini
alites - depois, teus membros insepultos serão dispersados pelos
lobos e aves do Esquilíneo". Outros muitos textos retomam o mesmo
tema. ( Cf. Petrônio, Sêneca, Artemídoro) .
N o entanto, o s corpos podiam ser reclamados pelas familias que
quisessem lhes assegurar uma sepultura decente, parece mesmo que
a lei facilitava sem dificuldades nem taxas esta última graça. De
resto, qualquer um podia reclamar os cadáveres: " Corpora animadverIIOrum
quibuslibet petentibus ad sepulturam danda sunt". (Digesta
1. XLVIII tit. XXIV, lex li) . Até mesmo as cinzas dos que haviam
sido condenados ao fogo_ (Pandectas) podi8lll ser devolvidas. A!!
provas que temos destas leis de clemência, são precisamente os
casos em que a autorização gratuita foi recusada e que são apontados
como exceção. Cícero, no "De Suppliciis" censura acremente
a Verres o ter pedido muito dinheiro para entregar os corpos de
supliciados que suas famílias não queriam ver prêsa dos animais.
Tal extorsão, diz o grande orador, era contrária à lei.
Por outro lado, podia o juiz, uma vez que a autorização dêle
dependia, recusá-la em certos casos por vários motivos em que
Jeralmente entrava o ódio contra o condenado, o que, em resumo,
era uma agravação da pena; o crime de lesa-majestade a acarretava.
Vespasiano acrescentou esta pena suplementar à condenação de certoa
conjurados que seriam atirados aos monturos de lixo sem sepultura
(Suetônio ) . Já antes, recusara Augusto, após a Batalha de Filipos,
a sepultura dE! um cativo de certa fama, respondendo aos que lha
vieram pedir que, bem cêdo, seria isto o oficio dos abutres (Suetônio)
. Semelhantemente Flaccus, prefeito do Egito, no ano 38 da nossa era, não autorizou a sepultura de certos judeus crucificados
(Filon, in Flaccwn) .
O lançaço. - Encontra-se mais tarde, no Digesto, a mesma
disposição: "Os corpos dos condenados à morte não devem ser recusados
a seus parentes . . . Os corpos dos supliciados não serão sepultados,
salvo quando a permissão foi pedida e concedida, e às
vêzes a recusam, sobretudo nos casos de condenados por crimes de
lesa-majestade" (Ulpiano) . O Digesto é do século VI, mas é uma
compilação de tôdas as leis antigas que, dado o espírito tradicionalista
dos juristas romanos, evoca, sem dúvida, os costumes e a legislação
do tempo que nos interessa.
Aliás, Quintiliano que é do século I, escreveu: "Percossos sepeliri
carnifex non vetet - o carrasco não impedirá que sejam sepuJtados
os que foram feridos". :l!:ste "percussos", se é que não
estou dando interpretação falsa, introduz aqui uma noção nova e
que interessa diretamente nosso assunto. Que quer dizer, na realidade,
êsse "percussos"? Não se trata do suplício em si mesmo nem
da flagelação, uma vez que se trata de condenados à morte, e bem
se sabe que êstes já foram flagelados e crucificados. Trata-se, portanto,
de um golpe especial, posterior ao suplício e que nos lembra
irresistivelmente o que chamamos em nossos dias de "tiro de misericórdia",
aquêle último tiro de revólver que se dá no ouvido de
um fuzilado mesmo que esteja evidentemente morto. Podemos, pois,
com bom fundamento, interpretar a frase de Quintiliano: "Permitirá
o carrasco o sepultamento dos supliciados depois que tenham
recebido o golpe de misericórdia".
Mas, em que consistiria êste golpe de misericórdia regulamentar,
indispensável para que estivesse o carrasco autorizado a entregar
o corpo à família? Orfgenes fala claramente (in Comm. in Math . } ,
como o diz o Padre Holzmeister, da "percussio sub alas", que
é evidentemente um golpe no coração. Mas, ao verificar o ontexto,
vejo que se trata do golpe que se dava, às vêzes, logo depois da
crucifixão para matar ràpidamente o condenado. Acrescenta êle que
Jesus não o tinha recebido, o que vem explicar o espanto de Pilatos
ante morte tão rápida.
Mas, um texto do filósofo e sábio médico do século li, Sextus
Empiricus, nos vem explicar que "hé tes kardias trôsis aítion estin
thanátou - a chaga do coração é causa de morte". Parece, pois,
bem provável que seja a êste golpe de misericórdia que Quintiliano
faz alusão.
Assim pois, quando a família pedia o cadáver, o carrasco devia
antes de tudo ferir o coração. Como geralmente o çarrasco era um
soldado, o golpe devia ser executado com a arma que tinha em
mão, uma lança ou um dardo_ Vs que êste golpe no coração
delo lado direito do peitQ estava certamente bel'il estudado --e
éonhecri!õ írilallvelffiente mortal, na esgrima dos exércitos romanos.
Dava, pois, tôda segurança sôbre a morte real do condenado . . . e,
se fôsse o caso, a provocaria.
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