A Paixão de Cristo
Segundo o cirurgião
CAPITULO 10
INSTRUMENTOS DA CRUCIFIXAO
Em regra geral, a cruz regulamentar, se é que assim se pode
falar, era formada por duas peças distintas. Já os Setenta chamam-
na "xylon didymon - o pau duplo" (cf. Josué, 8,39). Uma
das peças, a vertical, enterrada permanentemente com um poste
fixo, era o "stipes crucis - tronco da cruz" ; a outra, móvel e
que se fixava horizontalmente sôbre a primeira, se charriavã· o
"patibulum".
1. • - Stipes erucis. - Digamo-lo em português: o tronco da
cruz, porque "stipes" quer dizer tronco de árvore, estaca e mesmo
estaca ponteaguda. Era a esta parte que, primitivamente, se dava
o nome de "cruz". "Crux" (cruz em latim, como "stauros" em
grego, não é outra cousa senão uma estaca fixada verticalmente
no chão, da mesma forma que "sk"olops" que quer dizer estaca
pontuda. A prova disto, é que "stauros" e "skolops" puderam ser
usados um pelo outro e que certos autores puderam empregar o
verbo "anaskolopizein" (empalar) para a crucifixão de S. Pedro
e de Jesus.
O significado da palavra "crux" estendeu-se, em seguida, ao
conjunto dos dois paus ajustados um ao outro, tal como o concebemos
hoje em dia, com a forma + . Mais est:ranho, porém, nos
há de parecer o fato de que "crux" e "stauros" tenham sido em pregados
por sinédoque, para designar isoladamente o patíbulo
amovível: "Crucem portare - Stauron bastazein - Levar a cruz".
Quanto à cruz de S. André, em X , não era conhecida pelos
autores antigos. A primeira menção que dela se faz é do século X
e a primeira imagem, do século XIV.
Qual era a altura dêste "stipes" (tronco ) ? O Padre Holzmeister
distingue a "cruz bumilis" que é curta e a "cruz subliml..i"
que é comprida. Mas tôdas as citações que aduz, mostram claramente
que a "cruz sublimis" era reservada às personagens que
queriam colocar em evidência, quer se tratasse de alto personagem
como Regulus ou Bomilcar em Cartago, ou do assassino espanhol
a quem Cesar Galba concedeu irônicamente por se ter
fingido cidadão romano.
Antes pelo contrário, a maioria das cruzes era baixa, ''humilis".
Permitia esta circunstância aos animais ferozes lançados na
arena despedaçarem, à vontade, os crucificados e os lobos do
Esquilino (cf. Horácio) lhes devora·rem os cadáveres (havia nas
encostas do Esquilino, em Roma, uma floresta permanente de
"stipites" ) . Suetônio conservou-nos um dos ignóbeis traços de
Nero que se disfarçava com uma pele de algum animal feroz,
na arena para satisfazer a seu sadismo.
Notemos ainda que a tendência devia ser simplificar bastante
a crucifixão para os carrascos, por meio de cruzes baixas, sobretudo,
quando o trabalho apertava e quando os condenados eram
numerosos. Não devemos, nestas pesquisas sôbre um suplicio que
era quotidiano, esquecer a noção de comodidade, já aperfeiçoada
por não pequeno uso. É, portanto, conveniente que nos coloque
mos sempre na situação de um carrasco da época.
2. • - Patibulum-Furca. - O t>aU horizontal apresenta, pelo
numos em Roma, uma origem bastante curiosa ; era inicialmente
uma "furca" que consistia em uma peça de madeira em forma
de V de cabeça para baixo, sôbre a qual, nos pousos, se descançava
a lança dos carros de duas rodas. Quando queriam punir um
escravo, colocavaill-lhe a "furca" < .= forcado) montada na nuca,
ligavam-lhe as mãos às duas hastes e faziam-no passear pelas ruas obrigando-o a pr r:lamar sua falta . . Daí a injúria corrente em
Plauto: "furcifer - - carregador de furca". Ouçamos o que diz o
mesmo comediógrafo Plauto em sua "Mostellaria". verso 56: "lta
te forabunt patibulntum per vias stimulis - assim carregando o
patíbulo, levar-te-ão pelas ruas, com aguilhoadas".
Bem cêdo esta excursão expiatória passou a ser acompanhada
(após a denudação do condenado) por uma flagelação em regra,
durante todo o trajeto. Depois, para maior comodidade, passaram
a enganchar a "furca" em uma estaca vertical, o que permitia
açoitarem-no até à morte. É o que ainda se chamava, no tempo
de Nero, castigar "more maiorum - segundo o costume dos antepassados"
(cf. Suetônio, A morte de Nero ) . "Nulla causa est, escreve
Plauto, quin pendentem me virgis verberes - "Permito
que me faças açoitar pendente da cruz" ( Casina, verso 1003) -"
Verberibus caedere pendens - Serás carcomido de açoites, enquanto
pendurado (na cruz) " (Mostellaria, verso 1 1 67 ) .
Mas como nem sempre se tinha à mão uma "furca", passou-se
a usar um pedaço de pau comprido que servia para trancar as
portas e que se chamava "patibulum" ( de "patere" = estar aberto,
ao qual damos o nome àe "tranca" ) . Foi assim que a parte horizontal
da cruz, que, em breve, deixou de ser uma tranca tirada
de alguma porta, tornou-se um pau rectilíneo, levado pelo condenado,
do tribunal ao campo dos "stipites". Carregava-a, geralmente,
sôbre a nuca, tendo os dois membros _ superiores estendidos e amarrados
sôbre ela do modo a ficar, desta fornia , também impedido
de atacar a quem quer que fôsse. Compreende-se agora o por quê
da sentença condenatória: "Põe a cruz sôbre o escravo". Tertuliano
compara êste patíbulo à grande vêrga, única, dos mastros
dos navios romanos.
Sob Constantino ou seus sucessores, depois da abolição da
crucüixão, ver-se-á aparecer outra "furca". É esta uma estaca
bastante alta, terminada em forquilha, em Y. Nela se enganchava
o condenado pelo pescoço (a cabeça impedia-o de cair) e êste
encontrava ràpidamente a morte, estrangulado. Como logo se vê,
nada mais tinha isto de comum com a lenta morte de cruz.
3 .0 - Conjunção dos dois paus. ·- Ficavam, ordinàriamentc,
os dois paus separados; e disso ainda veremos outras provas, por
ocas1ao do carregamento da cruz (cf. cap. IV, E ) . Como então se
fixava o patíbulo sôbre a haste vertical, o "stipes"? A priori,
podia-se fazer de duas maneiras: ou inserindo-o em uma das faces
da estaca ou apoiando-o sôbre a extremidade dessa mesma estaca ;
fazia-se uma cruz ( + ) ou um T, o Tau maiúsculo do alfabeto
grego. Parece não haver sôbre isto um único texto antigo, capaz
de esclarecer o problema de modo _ definitivo, e será necessário
chegarmos até Justo Lipse (século XVI) para encontrarmos
denominadas por êle a +. como "ciux immissa" ou "capitata", e
o T, como "crux commissa".
Quase todos os arqueólogos modernos pensam que a cruz
:romana era em T (cf. Dom Leclerc, D ictionnaire D'Archéolo-
gie ) . Na arte cristã, podem-se ver, em tôdas as épocas, as duas
formas, se bem que o T pareça mais antigo; mas sôbre isto tornaremos
a falar a respeito da cruz de Jesus (cf. D, 5.0 ) . É certo,
se ainda uma vez nos colocarmos no lugar do carrasco, que o T
era muito mais fácil de executar para um carpinteiro. Bastaria
para tanto, cavar um encaixe no meio do patíbulo e conformar a
extremidade da haste vertical em concavidade para melhor recebê-
lo. Com uma cruz média, de dois metros no máximo, o encaixe
se poderia fazer fàcilmente erguendo o patíbulo com os
braços, sem necessidade de escadas ou suporte. Seria por acaso
ousadia acrescentar que o patíbulo que se mostra na Igreja de
"Santa Croce", em Roma, na escada que conduz à Capela das
Relíquias, como sendo a do bom Ladrão, tem precisamente êste
encaixe?
4.0 - Sedile. - É possível que, em certos casos, se fixasse
à parte anterior do "stipes", em sua parte média, uma espécie de
tolete horizontal, de madeira, que passasse entre as coxas e sustentasse
o perineo. O que provoca esta suposição são três frases
de Sêneca (Epistolae morales) , onde usa as expressões "sedere
cruce - assentar-se sôbre a cruz" e mesmo "acuta sedere cruce",
como se êste tolete fôsse de bordo agudo, como os cavaletes de
tortura medievais. No terceiro texto, fala de "patíbulo pendere,
extendi et sustineri - pender do"
patíbulo, nêle estar estendido e
sustentado". S. Justino também fala do "crucis lignum quod medium
est infixum, sicut cornu eminet, in quo insident crucifixi -
a madeira da cruz, que está fixa·da no meio, sobressai como um
chifre, sôbre o qual se assentam os crucificados"; S. Irineu diz
que a cruz tem cinco extremidades, sôbre a 5.a descança o crucificado.
Tertuliano também fala (Adversus Marcionem) do "sedilis
excessus" que lembra o chifre do unicórnio. "Sedile" quer simplesmente
dizer um assento qualquer e é, provàvelmente por
causa destas passagens, que os autores modernos chamam o tolete
perineal de "sedile", que aliás não tem es'ta designação em ne nhuma
outra parte.
Ao estudar as causas da morte na crucifixão, veremos que
êste apôio era destinado a prolongar consideràvelmente a agonia
por diminuir ·a tração sôbre as mãos, causa de tetania e asfixia.
É mais que provável que as cruzes não o tivessem e que só fôsse
acrescentado quando se desejava prolongar o suplício. Compreende-
se fàcilmente que quando fôsse necessário fabricar centenas de
cruzes, os carpinteiros não buscassem complicar muito as peças
de madeira que a j ustiça lhes enéomendava, com um trabalho
suplementar que sabiam ser perfeitamente inútil.
Veremos além disto, ao estudar as chagas das mãos (cap. V ) ,
a s razões por que estou convencido d a ausência dêste suporte na
cruz de Jesus. Aliás explica isto, ao menos em parte, a brevidade
de sua agonia. O sedile não foi jamais representado pelos artistas,
pmtores- ou escultores. É verdade que tal fato não constitue argumento
contra sua existência histórica, mesmo na Paixão do Salva-dor. Simplesmente signüfca, como de resto é fácil de compreender,
que um tal apôio perlneal é essencialmente inestético, para não
dizer indecente. 1: por .razões completamente diversas que o eli ·
mino, com segura consciência científica.
5.0 - Suppedanaeam. - Em compensação, os artistas têm re·
presentado com grande freqüência o supedâneo e os modernos o
representam quase sempre, fazen_do os pés de Jesus repousar sôbre
uma consola horizontal ou oblíqua, sôbre a qual estão pregados.
Voltaremos a examinar êste "suppedenaewn" que nenhum autor
anti�eo conheceu, segundo a c.firmação do Padre Holzmeister.
Encontramo-lo mencionado, pela primeira vez, em Gregório de
Tours (século VI - "De Gloria Martirii" ) . Ao estudar a crucifixão
dos pés (cf. D, 6.0 neste capítulo) , veremos como nasceu e
se desenvolveu esta pura imaginação de artista.
6.0 - Instrumentos de fixação. - Devemos estar dispostos a
admitir que os cravos nas mãos e nos pés eram a maneira habitual,
essencial de fixação à cruz, quaisquer gue fôssem os motivos da
condenação e a situação social do condenado. Tanto eram pregados
vs escravos como os livres, judeus ou romanos.
O êrro que atribue a Jesus o monopólio dos cravos deve-se a
uma frase de Tertuliano (Adv. Marcionem) : "Somente 2le foi crucificado
de modo tão especial". O êrro foi referendado, em nossos
tempos, por Theodoro Mommsen, sem dúvida, eminente historiador,
mas cujas teses foram, ao depois, em não pequeno número,
fortemente discutidas. Diga-se de passagem, que não foi esta a única
vez que o progresso da ciência veio infligir à pretensa exatidão germânica
cruéis desmentidos. Tão sómente por causa de Tertuliano
passou a iconografia cristã a representar .Jesus pregado à cruz entre
dois ladrões amarrados.
Realmente, os dois modos de fixação (cravos e cordas) estive·
raiil em uso, desde o comêço, entre os romanos. Mas estavam separados.
Nenhum texto, convém nisto insistir, insinua nem permite
crer que os dois métodos tenham sido jamais empregados simultâneamente
sôbre o mesmo crucificado. Os peritos sabiam perfeitamente
que três cravos, quatro no máximo eram mais que sufi ·
ciente para executar uma crucifixão rápida e sólida. Todo o resto
é pura imaginação.
Creio mesmo que os cravos eram empregados com muito maior
freqüência. Em numerosos textos, não sõmente os cravos são formalmente
citados, mas também os fluxos do sangue que manava
dos ferimentos sôbre a cruz. Vede também o que podemos ler em
"O Burro de Ouro" de Apuleu: "Estas bruxas que vão recolher o
sangue de assassinos aderentes à cruz, para com êle exercer sua
· vergonhosa magia". Melhor ainda: o têrmo técnico, que, em grego,
designa com maior freqüência a crucifixão, é "proselosis" do verbo
"pros-helõ" ou seu sinônimo "kathelosis" do verbo "kathelõ", sendo
que ambos os verbos aignificam "cravar", "pregar" . Como logo
ae vê, os doia têm ·pol' raiz o substantivo "belos" que quer dizer "cravo" ou "prgo". - Quando Xenofonte de Éfeso dá notícia de
que no Egito os crucificados tinham mãos e pés amarrados à cruz,
observa expressamente que se tratava de uso local, prova de que
nas outras partes os cravos eram mats conhecidos.
Nunca mais se diga que o ser amarrado era apanágio dos es<!
ravos! Plauto, a quem devemos sempre recorrer para esclarecimentos
de costumes referentes aos escravos, fala de "adfigere", "offigere".
"Te cruci ipsum propediem adfigent alii - Outros, em breve,
te cravarão à cruz" (Persa, verso 295 ) . - "Quem quer ser crucificado
em meu lugar? " exclamava o escravo Tranion, "ego dabo
ei talentum, primus qui in crucem excucurrerit, sed ea lege ut
-offigantur bis pedes, bis bracchia - darei um talento ao primeiro
que tiver corrido à cruz, mas com a condição de que se o crave
duas vêzes os pés e duas vêzes os braços" (Mostellaria, versos 359-
360 ) . í:ste "bis", segundo contexto, signüica simplesmente que pede
êle, com ironia, dois cravos para cada um dos quatro membros, para
estar certo de que seu substituto não escapará de forma alguma.
O que não quer dizer um cravo para cada pé.A última palavra
·"braços" já evoca, com algum exagêro, o que demonstraremos experimentalmente:
a crucifixão se fazia não nas palmas das mãos,
mas nos carpos.
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