A Paixão de Cristo 

Segundo o cirurgião CAPÍTULO 2



H ISTÓ RI A

É certo que, no Domingo da Ressurreição, Pedro e João encontraram
no tümulo a mortalha de Jesus. Os sinópticos, que,
por ocasião do sepultamento, não falaram senão da mortalha, assinaL'Ul
l, no Domingo, os "othonia" ( =panos); a mortalha evidentemente
faz parte dêsses "othonia" (=panos) (3). S. João,
(1) Ubrairie du Carmel, 'l:l, rue Madame, Paris VI.
que, em seu Evangelho, não falou na sexta-feira Santa, a não
ser dos "othonia", assinala, no Domingo os "othonia" e o "soudarion''.
Veremos com M. Lévesque que êste "soudarion" é a
mortalha do aramaico em que pensa S. João. Quem o recusar
será forçado a colocar a mortalha entre os "othonia".
Que destino lhe deram os apóstolos? Apesar da natural repugnância
própria a Judeus, para quem tudo que toca a morta
é impuro, sobretudo um pano manchado de sangue, é impossível
admitir que não tivessem recolhido com todo cuidado esta
relíquia da Paixão do Homem Deus. É necessário· admitir também
que a esconderam cuidadosamente. Deviam protegê-la da
destruição por parte dos perseguidores da jovem Igreja. Por
outro lado, não se podia pensar em propô-Ia à veneração dos
novos cristãos ainda imbuídos do horror dos antigos pela infâmia
da cruz. Haveremos de voltar com mais vagar a êste longo
período em que a cruz se escondia sob símbolos: só nos século11
V e VI é que veremos os primeiros crucifixos que, de resto, aparecem
ainda um tanto disfarçados. Só nos séculos 7.0 e 8.0, é que
êles se espalham um pouco. Não será senão no século XIII que
se difundirá a devoção à Paixão de Cristo.
Acrescentemos a seguinte hipótese que está baseada em fe·
nômeno biológico misterioso mas devidamente verificado (!i): é
muito possível que nesta mortalha, portadora desde o início de
manchas sanguíneas, as impressões corporais não fôssem visíveis
durante muitos anos. É possível que elas só se tenham "revelado"
posteriormente, como sôbre uma chapa fotográfica que
esconde sua imagem virtual até o banho revelador.

(3) Nota do Traduto�r: A R!evista "Biblica", do Pontifício Instituto Bíblico
de Roma, publicou, no seu número de maio de 1953, uma notícia que vEm confirmar
perfeitamente a teoria do Autor: D􀀢 acôrdo com a publicação de C. H.
Roberts - E. G. Turner, Catalogue o f the Greck and Lati�: Papyri 􀾆n the
John Rylands Library, vol IV, 1952, Manchester; 1:.0 Pap'ro n.0 627, à pág. 117
li. consta o relatório de um magistrado romano de nome Tcófano que, por volta
do ano 320, viajou do Egito superior a Antioquia da Síria. Deixando de lado a
relação sôbre as estações de muda, distâncias, despesas, etc. examinando o inventlir:
o das bagagens, onde eneontraromos nas listas dos vestimentos êstes nomes:
eob o título de "lndice dos panos ( = othoníon)" vêm enumeradas 17 espécies
de co-isas feitas de linho e�:tre as quais aparece "1 phakárion" (= sudário) na
linha 13, e na linha 17, aparecem "4 sindónia" (= tecido de linho fino ou roupa
feita dêsse tecf.do). Logo "othónia" é um nom<:� genérico sob o qual se pode
compreender os "sindóda" e os "phakária" (ou seu sinônimo: soudarion), pre­
cisamente como quando noe referimos a u'a mala de "roupa" dentro da qual
estão tanto roupas de uso pes11oal como roupas de cama. A contradição, pOi'tanto,
entre os sinótioos e S. João é apenas aparente.
(4) Como Teremos ao estudar a formação das im􀾇eseões, .:.esre mesmo capítulo,
E, 2.0 - trabalho de Volckringar, pág. 30.
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Pois existe todo um período obscuro em que a Mortalha (ou
Sudário ) não aparece, no qual não pode aparecer. Era mesmo
necessário que estivesse cuidadosamente escondida, para ter escapado
a tôdas as ocasiões de destruição. Romanos, persas, medos,
partas, devastaram sucessivamente Jerusalém e a Palestina, massacraram
ou dispersaram os cristãos, pilharam e demoliram suas
igrejas. E o que foi feito da Mortalha?
Nicéforo Calisto escreve em sua História Eclesiástica, que a
imperatriz Pulquéria fêz construir, em 436 em Constantinopla
a basílica de Santa Maria dos "Blachernes" e ali depositou os
panos mortuãrios de Jesus, recentemente descobertos. É precisamente
aí que iremos ver o Santo Sudário, em 1204 (Roberto de
Clari). Entretanto, em 1171, segundo Guilherme de Tyr, o imperador
grego, Manuel I, Commeno (1122-1180) mostra ao rei
Amaury de Jerusalém as relíquias da Paixão: lança, cravos, esponja,
corôa de espinhos e a Mortalha que êle conservava na
Capela do "Boucoléon". Ora, tudo isto ali está, mais uma Verônica,
segundo Roberto de Clari, menos a Mortalha que está em
"Blachernes", segundo o mesmo Clari. Convém, de resto, notar
que Nicéforo, morto em 1250, escreveu após a tomada de Constantinopla
, em 1204, quando a Mortalha desapareceu. Há portanto
alguma confusão possível.
Mas, muito tempo antes, S. Bráulio, bispo de Saragoça, em
631, varão douto e prudente, em sua carta XLII ao abade Tayon
(5 ) fala como de cousa conhecida há muito tempo "de sudário
quo corpus Domini est inyolutum - da Mortalha (= Sudário)
em que o corpo do Senhor foi envolvido". E acrescenta: "A Sagrada
Escritura não diz que tenha sido conservado, mas não se
pode taxar de supersticiosos aquêles que acreditam na autenticidade
dêste Sudário". Um "sudário" que envolveu o corpo de
.Jesus não pode ser senão u'a mortalha ; vê-lo-emos no capítulo
do sepultamento. Onde estava ela pois 11essa época?
Abramos os três livros do abade beneditino de lona, Adamnan.
"Sôbre os Santos Lugares, de acõrdo com a relação de
Arculfo, bispo francês", secção III, cap. X: "de Sudario Domini"
(6). Arculfo faz uma peregrinação a Jerusalém por volta do
ano 640. Aí viu e osculou o "Sudat:ium Domini quod in sepulcro
super caput ipsius fuerat positum - o Sudário do Senhor que
no sepulcro estivera colocado sôbre Sua cabeça". São as mesmas
palavras com que se expressou S. João (cf. 20, 7 ) . Ora, êste sudário,
segundo Arculfo, é uma comprida peça de tecido que mede, avaliada
a ôlho, cêrca de 8 pés de comprimento (= 2,44m. ) . Não é portanto
um lenço mas sim um lençol ou mortalha (=sudário ) .
O venerável Beda, no comêço do século VIII, também regista êste
testemunho de Arculfo em sua História Eclesiástica (De Locis
Sanctis) . Mais ou menos na mesma época, S. João Damasceno
(5) Patrologi.a Latina, tomo 80, co!. 689.
(6) Publicados por Mahill«n, em Acta Sanutorum Ordinis Benedictini.
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assinala entre as relíquias veneradas pelos cristãos, o "sindon".
Vemos desde logo que "sindon" e "sudarium" são empregados
indiferentemente como sinônimos.
Parece resultar de tudo isto que no século VII, a Mortalha
ficara em Jerusalém ou voltara para lá e que não foi para Constantinopla
senão mais tarde. Quando? Não o sabemos. Talvez
antes do século XII, durante o qual alguns peregrinos se referem,
ao "sudarium quod fuit super caput eius" naquela cidade; acabamos
de ver segundo Arculfo que isto significa a Santa Mortalha.
Em todo o caso, já lá estava em 1204 por ocasião da 4.a Cruzada.
Roberto de Clari, cavaleiro da Picardia, que tomou parte. na
tomada de Constantinopla, em 1204, nos conduz a terreno já muito
mais sólido ( 7).
Roberto é considerado pelos críticos de história como homem
de instrução média, um tanto ingênuo e que se pode deixar embair
na política dos altos barões, dos quáis estava longe. Mas é testemunha
muito atenta e perfeitamente sincera em relação a tudo o
que êle mesmo vê.
Ora, escreve êle minuciosamente (pág. 8 2 ) tôdas as riquezas
e relíquias vistas nos palácios e nas "rikes kapeles" ricas capelas
da cidade; especialmente no "Boucoleon" que jocosamente denomina
"el Bouke de Lion" (=o estreito de Lião) e em "Blachernes".
No "Boucoleon" , viu a respeito de Jesus, dois pedaços da
verdadeira cruz, o ferro da lança, dois cravos, um frasquinho de
sangue, uma túnica e a coroa. Viu também (descrito à parte com
a longa lenda de sua formação, quando de uma aparição de Nosso
SeT)hor a um santo homem de Constantinopla ) uma "toaille" i. e.
um pano com o rosto do Salvador (como a Verônica de Roma) e p
uma telha (ou placa de barro cozido) onde estava ela decalcada.
Mas foi em "Blachernes" que. encontrou o Santo Sudário.
Tudo isto escrito naquela rude língua d'oil do século XII, que vive
ainda nos atuais dialetos valões. É necessário lê-lo em voz alta.
com o sotaque do Norte, talvez ter também sangue valão nas
veias, para saboreá-lo plenamente. Em tradução, ei-lo aqui (página
90): "E entre êstes outros havia ali um mosteiro, que chamavam
Senhora Santa Maria de "Blâchernes", onde estava a Mortalha
em que Nosso Senhor foi envolvido; e que cada sexta-feira
era levantaO.a e estirada tão bem que nela se podia ver o retrato
de N. Senhor. E não soube jamais nem Grego nem Francês o que
aconteceu a esta Mortalha quando a cidade foi tomada".
O Santo Sudário foi portanto roubado ou transformado em
prêsa de guerra , se se quiser ser indulgente. Ora, segundo os
historiadores de Besançon, D. Chamard em particular, u'a mortalha
correspondente à descrição de Clari foi consignada, em 1208,
às mãos do arcebispo de Besançon, por Ponce de la Rache, senhor
do Franco-Condado, pai de Oto de la Rache, um dos principais
{7) La Conquête de Constantinople, in Classiques Français du Moy.en Age.
Ed. Champion, 1924.
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chefes do exército borgonhês na cruzada de 1 204. Essa mortalha
que tem todos os indícios de ser o nosso atual Santo Sudário,
continuaria a ser venerada na Catedral de S. Estevão até 1349 .
Notemos de passagem que Vignon emitiu dúvidas, em seu livro
de 1938, sôbre a estada em Besançon, mas, apesar disso, continua
a ser muito provável a referida estada.
No citado ano de 1349. um incêndio devastou a Catedral e o
Santo Sudário desapareceu uma 2.a vez, só seu relicário é que
foi reencontrado. Fôra roubado e êste fato explica provàvelmente
a falsa pcsição e as aventuras que vai sofrer durante um século.
É esta lembrança que gera ainda preconceitos no espírito de certos
historiadores, cada vez mais raros, que se recusam a encarar o
valor intrínseco do documento e de lhe examinar as .imagens, sob
o pretexto a priori de que isto não pode ser senão uma falsidade.
Seria o mesmo que recusar estudar a lua, porque não lhe veremos
jamais senão a metade!
A Mortalha reapareceu 8 anos mais tarde, em 1357, como
propriedade do conde Godofredo de Charny que a recebeu como
presente do rei Felipe VI. f:ste a teria recebido do ladrão, que se
supõe ter sido um tal Vergy. Charny colocou-a na Colegiada de
Lirey (Diocese de Troyes ) , fundada por êle mesmo alguns anos
antes. Ora, mais ou menos na mesma época reaparece, em Besançon,
uma outra mortalha, da qual temos numerosas cópias, e
que era evidentemente uma incompleta e má reprodução em pintura
da de Lirey. Foi o que demonstraram, sem dificuldade, os
enviados da Comissão de Segurança Pública, que a destruíram, de
acôrdo com o clero da Catedral, em 1794 .
A Mortalha de Lirey não deixou, por isso, de ser alvo das
hostilidades dos bispos de Troyes, de início, Henrique de Poitiers,
trinta anos, mais tarde, Pedro d' Arcy que se opuseram à sua exposição
pelos cônegos de Lirey. Lamentavam-se de que os fieis abandonavam
as relíquias de Troyes, para correr em massa a Lirey .
Os Charny cêdo retomaram a relíquia guardando-a por trinta anos.
Em 1389, expuseram sua causa ao legado do novo Papa de
Avignon, Clemente VII que acabava de iniciar o grande cisma
do Ocidente, depois ao próprio antipapa em pessoa. Ambos autorizaram
a exposição, não obstante a proibição do bispo Pedro
d'Arcy. Depois, por reclamações dêste, Clemente VII acabou por
decidir, tentando 1un arranjo com ambas as partes, que por um
lado o bispo não poderia mais se opor às exposições, mas, que
por outro se declararia em cada exposição tratar-se de uma pintura
representando o verdadeiro Sudário de N. Senhor.
Pedro d'Arcy, em suas memórias, apresenta a Clemente, graves
acusações eivadas de rancor contra os cônegos de Lirey a
respeito de simonía por parte dêstes. Acrescenta, como se fôsse
verdade, que seu predecessor tivessse feito uma pesquisa e recebido
a .confissão do pintor, autor da Mortalha.
Não se encontrou jamais vestígio algum dessa investigação
nem das declarações do pintor. Se algum pintor houve, parece
muito provável ter sido o que copiou o Sudário. de Lirey para
fazer o de Besançon. Na realidade, tôdas as decisões não foram motivadas senão por questões de interêsse particular e pelo argumento
do silêncio dos Evangelhos sôbre a existência das impressões.
Parece que o Sudário nunca foi examinado diretamente, sem
parcialidade, pois se teria então visto como se vê hoje, que não
tem êle o menor sinal de pintura. Mas o pseudo-papa Clemente VII
nunca se mostrou preocupado com isto.
É muito difícil resumir estas disputas um tanto sórdidas. Mas
bem parece poder concluir-se que o pobre Sudário não tinha se·
não um defeito, o de não possuir "autênticas". No entanto, como
possui-las se sua presença em Lircy era o resultado de duplo furto,
sendo que o 2.0 comprometia o próprio rei de França como acoutador
de furtos? Foi precisamente a falta de carteira de identidaàe
que, em tôda a parte, ocasionou dificuldades ao último proprietário,
Margarida de Charny, quando o levou para Chimay, na
Bélgica. Dêste modo, após numerosas peregrinações, em 1452, ela
o haveria de doar a Ana de Lusignan, espôsa do duque de
Saboia.
Foi assim que chegou a Chambéry e tornou-se, o que é ainda
ho,je, pro1>riedade da casa de Saboia, até há pouco reinante na
Itália. Queira Deus que chegue um dia a seu pôrto de destino
natural, às mãos do Sumo Pontifice, sucessor de S. Pedro e Vigário
de Jesus Cristo, o único homem no mundo que tem verdadeiros
direitos sôbre esta relíquia!
A história do Santo Sudário torna-se daí para cá bastante
conheciqa. O duque de Saboia mandou-lhe construir uma "Santa
Capela" em Chambéry. Sucedem-se as exposições e fazem-no passar,
de acôrdo com o cronista Antônio de Lalaing, por estranhas
provas para se assegurarem de sua autenticidade. Fizeram-no ferver
no óleo e lavaram-no com sabão, várias vêzes, sem poder apagar
suas impressões: Idéia assombrosa se é que a crônica é verídica,
mas que supõe uma decidida e fera vontade de certeza.
Como se os homens não bastassem, irrompeu um incêndio
na Santa Capela, em 1532, que por pouco não destruiu a relíquia.
Uma gôta de prata derretida queimou um canto do tecido
dobrado em seu relicário causando-lhe assim duas séries de abrasamentos
que encontramos a intervalos regulares. Felizmente, os
buracos ficaram dos lados da impressão central. A água empre.
gada para extinguir o incêndio deixou largos círculos simétricos em
tôda a extensão do Sudário. Foi êste o segundo incêndio depois do
2.0 furto.
Pelo menos um feliz resultado obteve-se daí: a devassa canônica
para estabelecer a autenticidade do Sudário danificado e sua reparação
pelas Clarissas de Chambéry, que foi acompanhada de
processo-verbal descritivo e minucioso feito por essas virtuosas
moças.O Sudário ainda peregrinou bastante, seguindo as vicissitudes
políticas de seu proprietário, chegando, finalmente, em 1578,
a Turim, onde S. Carlos Borromeu o venerou. Emitira o voto de
ir a Chambéry, mas o duque de Saboia poupou-lhe a travessia
dos Alpes de modo que só teve de ir a pé de Milão a Turim.
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Foi, depois, colocado na Santa Capela, anexada à Catedral
de S. João na mesma cidade de Turim, onde muito raramente é
exposta, dependendo isto de permissão especial da Casa de Saboia
que não é nada pródiga. As últimas foram em 1898 (primeira fotografia),
1 93 1 , e 1933. Esta última foi obtida em razão do centenário
tradicional da morte de Jesus (mas provavelmente inexato)
(8).

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